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set 12, 2009 - Poligrafia    No Comments

Ricos e pobres, como sempre…

Nosso céu tem mais estrelas… Nossos bosques têm mais flores… Nossa vida tem mais amores… Achamos-nos donos do cruzeiro do sul! É o velho ufanismo, já explícito no documento no. 1, a Carta de Pero Vaz de Caminha: “a terra em tal maneira he graciosa que querendo a aproveitar, darseá nela tudo…” Más, há o novo: o pré-sal salvará a Pátria: educará a massa ignara; empregará os desempregados; acabará com as filas nos hospitais; redimirá os pobres; edificará moradia para quem a não possui. Reinventará, enfim, a nacionalidade… Fará surgir, na vida de um sem numero de brasileiros, a cidadania, que nunca passou, para eles, da letra morta do preceito constitucional.

Há 300 quilômetros da costa, numa profundidade abissal, estendendo-se do Espírito Santo a Santa Catarina, jaz a riqueza redentora: o petróleo do pré-sal! Descoberta, feitas as primeiras sondagens, logo atiçou as visões desmedidas da vanglória, dessa classe especializada em desperdiçar recursos e oportunidades. Assim na Colônia, ultrapassou o Império, para se agravar na República. Foram-se, debalde, pau-brasil, a madeira de lei, a cana-de-açúcar, café, borracha, cacau; o ouro, o diamante, e… tantas outras que já nem sei. As riquezas minerais (de Carajás etc.) e os recursos por elas gerados não sabemos a que serviram.  Mas, continuamos fieis ao velho bordão: somos o país do futuro: essa ficção temporal que nunca chega, porque deixa de ser quando começa a existir. E não nos preocupamos com o que realmente conta: o presente, onde tudo ocorre. Neste é que se enfrentam as conseqüências da pobreza, da deseducação, do não acesso aos meios básicos de uma vida digna; que se padece; que se estiolam as gerações. Porém, a elite ufanista que nos governa só fala do futuro… porque já assegurou a tranqüilidade do seu próprio presente.

Um projeto de lei foi encaminhado, pelo governo, ao Congresso Nacional, em regime de urgência, para criar novas regras ao chamado “marco regulatório do petróleo”: em vez do regime de concessão vigente, a riqueza, acha o governo, deve ser explorada sob regime de partilha, controlada por uma nova estatal, que será criada.  Têm os senhores congressistas noventa dias para o apreciarem e decidirem. Senadores e deputados, contudo, consumidos em estafante trabalho parlamentar, coitados, acham pouco o tempo que lhes foi concedido: afinal eles se preocupam muito com o futuro, o próximo: 2010… Ontem um deles, em face da confusão que se estabeleceu na votação de destaques, no projeto de reforma eleitoral, sem saber que o estávamos ouvindo, pela TV, disse: faz tanto tempo que aqui não se vota nada, que desaprendemos a votar.

Mal começou a apreciação no novo regulamento do petróleo, uma sucessão bombástica de argumentos e contra-argumentos, de ataques e contra-ataques, de tediosas dissertações “técnicas”, veio, sob medida, para desviar a atenção da crise de Senado, do que já não se fala mais… Recolheram-se os quixotescos cartões vermelhos; já não se pronunciam mais sarneynárias, já não se pede mais a sua renúncia… Tudo está dominado: comportem-se, porque aqui não há santo, disse um deles, ameaçando divulgar o subterrâneo onde se forjam atos secretos… Outro, em crise aguda de permanente ufanismo, não se cansa de dizer que este é o melhor Senado de toda a história; que eles, Senadores, são os pais da Pátria. Não declinou quem são as mães, que não é difícil deduzir, pela prole…

Brava senadora acriana, que propaganda eleitoral a qualifica como uma das pessoas capazes de salvar o planeta, sufocada no exíguo espaço político governista, deixa o partido onde se notabilizou, para ir-se juntar aos “verdes”, onde florescem Zequinha e Gabeira, antípodas dessa política esquizofrênica… Outros, três, vivem em guerra declarada com o seu partido, mas não o deixa… Chegam a dizer que são do velho MDB, de Ulisses e Teotônio, num ufanismo contrário: do passado superado, há muito, pelo presente.

Os governadores, dos ditos Estados produtores, logo entraram em cena, para garantir o seu quinhão: foram ao Planalto, pressionaram, e conseguiram retirar do texto o que lhes não interessavam. Isto aguçou a cobiça dos outros, dos Estados não produtores, que logo justificaram: a riqueza jaz a mais de 300 quilômetros da costa, portanto não é deles, é da nação e, por isto, deve ser repartida com todos, igualmente. Como é a maioria, um deles advertiu: é bom negociar, porque no cabo de aço (deve ser um regionalismo pernambucano) nós venceremos!

É isso aí: essa gente preocupadíssima com o futuro do Brasil traçará, com toda a certeza, destino da presumida riqueza: os ricos continuarão ricos e os pobres continuarão pobres, como sempre…

Fernando Guedes

11/9/2009

ago 31, 2009 - Poligrafia    No Comments

Euclides da Cunha

Não será uma súmula biográfica. Não farei uma crítica literária. Não abordarei sobre sua trágica morte, um século depois dela. Sobre esses aspectos já escreveram os biógrafos, os críticos literários, os jornalistas… Sendo apenas um admirador incondicional dOs Sertões, obra que a meu juízo dispensa qualquer espécie de crítica, busquei, nos meus arquivos, algum episódio que pudesse, neste centenário de sua morte, traçar, de forma inédita, a estatura desse grande brasileiro que é Euclides da Cunha (o verbo foi de propósito no presente). É um episódio amazônico, narrado, com o título de Símbolo do Brasil, assim por Afrânio Peixoto (In Parábolas, tomo XII, da edição W. M. Jackson, 1947):

“No Curanja, Alto Purus, confins do Amazonas, um dia, certa comissão peruana mandada a encontrar-se com outra, brasileira, para demarcação de limites, depois de longas discussões e susceptibilidades, naturais a dois povos vizinhos que desejam o mesmo trato de terra, pôs, finalmente, termo aos seus trabalhos, convidando-nos para uma festa de despedida.

Euclides da Cunha representava o Brasil. Com seus companheiros de missão fora recebido, cercado das deferências devidas, no acampamento dos estrangeiros, que os levaram ao salão do banquete, magnífico salão improvisado na floresta, recinto de verdura e de ramagens, palmas e palmeiras da mata, a que apenas a mesa do festim e as bandeiras, que o enfeitavam, compunham um aspecto civilizado. Olhou em roda Euclides, procurando entre as outras que se ofereciam à vista as cores nacionais e… não as encontrou… Fora omitido o pavilhão brasileiro!

Mal lhe sofreu o ânimo esperar pelo desagravo, mas esperou, vencendo-se, para honrar a missão que lhe confiaram. Quando chegou, porém, a vez dos brindes, das palavras amenas de confraternidade internacional, da evocação dessa Sul América em que somos como irmãos na mesma família, explicaram os estrangeiros, pedindo desculpas, não estar ali, entre tantas amigas, a bandeira nacional, porque não viera nas suas provisões…

Do Peru haviam trazido todos os pavilhões americanos e, vindo para o Brasil, não trouxeram o brasileiro. Não era, pois, ofensa por omissão; talvez fosse ironia, de esquecimento; com descortesia, por descuido. Euclides da Cunha empunha então a taça e, sem alusão às escusas, louva os peruanos que acabara de dar a nossa Pátria a mais formosa expressão de deferência. Não a quiseram representar por um pedaço de pano colorido, retalho de polidez, ou simples agrado à vista, que se adquire nas lojas, por algumas moedas, sem emoção, quando é um estrangeiro que a adquire. Vindos aos Brasil não entenderam trazer-lhe os seus hóspedes mais um trapo comprado; num requinte de cavalheirismo e galhardia buscaram na própria terra brasileira um símbolo nobre e direito que a representasse, na glória, de luz e de esperança, de suas cores nacionais: eram aquelas palmas todas, todas aquelas palmeiras, que os cercavam e onde se desbotavam, por contraste, todos os outros pavilhões americanos. No caule liso e altivo, apontando para o céu, estava bem a lança do nosso pendão, representando os desígnios do Brasil na América do Sul, e no mundo, onde só desejamos expansões para as alturas do nosso ideal. Soerguidas, acima dos interesses rasteiros, no tope que procura o azul, bem estavam as palmas auriverdes, cores da nossa bandeira, onde o esplendor da rica natureza se acrescenta à esperança forte da gente, nas certezas que nos promete o nosso destino, confiança que se vai realizando…

Cada palmeira alta e nobre, lisa e direita, coroada de raios e de palmas, de flâmulas e de bênçãos, é um símbolo do Brasil! Bendito e perfeito, símbolo de minha terra!”

Brasil, símbolo de si mesmo, visto com a majestade selvagem que viu Euclides, no início do século passado, nos confins do Amazonas… Euclides: engenheiro, escritor, sociólogo, antropólogo… cultura, diplomacia… Isto é passado, que subsiste apenas nas páginas que o imortalizaram.

Fernando Guedes

31/8/2009

Não será uma súmula biográfica. Não farei uma crítica literária. Não abordarei sobre sua trágica morte, um século depois dela. Sobre esses aspectos já escreveram os biógrafos, os críticos literários, os jornalistas… Sendo apenas um admirador incondicional dOs Sertões, obra que a meu juízo dispensa qualquer espécie de crítica, busquei, nos meus arquivos, algum episódio que pudesse, neste centenário de sua morte, traçar, de forma inédita, a estatura desse grande brasileiro que é Euclides da Cunha (o verbo foi de propósito no presente). É um episódio amazônico, narrado, com o título de Símbolo do Brasil, assim por Afrânio Peixoto (In Parábolas, tomo XII, da edição W. M. Jackson, 1947):
“No Curanja, Alto Purus, confins do Amazonas, um dia, certa comissão peruana mandada a encontrar-se com outra, brasileira, para demarcação de limites, depois de longas discussões e susceptibilidades, naturais a dois povos vizinhos que desejam o mesmo trato de terra, pôs, finalmente, termo aos seus trabalhos, convidando-nos para uma festa de despedida.
Euclides da Cunha representava o Brasil. Com seus companheiros de missão fora recebido, cercado das deferências devidas, no acampamento dos estrangeiros, que os levaram ao salão do banquete, magnífico salão improvisado na floresta, recinto de verdura e de ramagens, palmas e palmeiras da mata, a que apenas a mesa do festim e as bandeiras, que o enfeitavam, compunham um aspecto civilizado. Olhou em roda Euclides, procurando entre as outras que se ofereciam à vista as cores nacionais e… não as encontrou… Fora omitido o pavilhão brasileiro!
Mal lhe sofreu o ânimo esperar pelo desagravo, mas esperou, vencendo-se, para honrar a missão que lhe confiaram. Quando chegou, porém, a vez dos brindes, das palavras amenas de confraternidade internacional, da evocação dessa Sul América em que somos como irmãos na mesma família, explicaram os estrangeiros, pedindo desculpas, não estar ali, entre tantas amigas, a bandeira nacional, porque não viera nas suas provisões…
Do Peru haviam trazido todos os pavilhões americanos e, vindo para o Brasil, não trouxeram o brasileiro.  Não era, pois, ofensa por omissão; talvez fosse ironia, de esquecimento; com descortesia, por descuido. Euclides da Cunha empunha então a taça e, sem alusão às escusas, louva os peruanos que acabara de dar a nossa Pátria a mais formosa expressão de deferência. Não a quiseram representar por um pedaço de pano colorido, retalho de polidez, ou simples agrado à vista, que se adquire nas lojas, por algumas moedas, sem emoção, quando é um estrangeiro que a adquire. Vindos aos Brasil não entenderam trazer-lhe os seus hóspedes mais um trapo comprado; num requinte de cavalheirismo e galhardia buscaram na própria terra brasileira um símbolo nobre e direito que a representasse, na glória, de luz e de esperança, de suas cores nacionais: eram aquelas palmas todas, todas aquelas palmeiras, que os cercavam e onde se desbotavam, por contraste,  todos os outros pavilhões americanos. No caule liso e altivo, apontando para o céu, estava bem a lança do nosso pendão, representando os desígnios do Brasil na América do Sul, e no mundo, onde só desejamos expansões para as alturas do nosso ideal. Soerguidas, acima dos interesses rasteiros, no tope que procura o azul, bem estavam as palmas auriverdes, cores da nossa bandeira, onde o esplendor da rica natureza se acrescenta à esperança forte da gente, nas certezas que nos promete o nosso destino, confiança que se vai realizando…
Cada palmeira alta e nobre, lisa e direita, coroada de raios e de palmas, de flâmulas e de bênçãos, é um símbolo do Brasil! Bendito e perfeito, símbolo de minha terra!”
Brasil, símbolo de si mesmo, visto com a majestade selvagem que viu Euclides, no início do século passado, nos confins do Amazonas… Euclides: engenheiro, escritor, sociólogo, antropólogo… cultura, diplomacia… Isto é passado, que subsiste apenas nas páginas que o imortalizaram.
Fernando Guedes
31/8/2009
ago 23, 2009 - Poligrafia    3 Comments

Opasch ou a Ética do Princípio…

Escreveu, no ensaio Ética e Política, Norberto Bobbio, que há duas éticas: a dos princípios e a da finalidade. Esta, a da finalidade, é a que remete seu seguidor a perscrutar as conseqüências dos seus atos, antes da ação. A outra, dos princípios, é a que leve o seu seguidor a não se importar com as conseqüências dos atos que pratica, porque só os pratica se estiverem consonantes com os seus princípios morais.

Não há, aqui, argüir qual delas é a mais conveniente, porque não é esta a finalidade da Filosofia Moral. Bobbio nos deixa claro que é besteira ficar-se imaginando o político agir de acordo com a ética dos princípios… Escreveu, o eminente milanês: “O problema das relações entre ética e política é mais grave porque a experiência histórica mostrou, ao menos desde o contraste que contrapôs Antígona a Creonte, e o senso comum parece ter pacificamente aceitado, que o homem político pode se comportar de modo dissonante da moral comum, que um ato ilícito em moral pode ser considerado e apreciado como lícito em política, em suma, que a política obedece a um código de regras, ou sistema normativo, que não se coaduna e em parte é incompatível com o código de regras, ou sistema normativo da conduta moral”, e cita, no mesmo admirável texto, esta impiedade de Croce: “Outra manifestação da vulgar inteligência acerca das coisas da política é a petulante exigência que se faz de honestidade na vida política”. E por aí vai… Para encerrar esta despretensiosa inserção bobbiana, remato assim: “A ética política se torna assim a ética do político e, como ética do político e portanto ética especial, pode ter seus justificados motivos para aprovar uma conduta que o vulgo poderia ver como imoral mas que o filósofo vê simplesmente como o necessário conformar-se de indíviduo-membro à ética do grupo”. Por imediatamente contemporâneo, não autorizo nenhuma inferência, do que aqui escrevo, que possa me ligar a uma justificativa do que ora se passa, por exemplo, no Senado, porque aquilo é fruto de um sistema pernicioso e permissivo, que vem infelicitando esta República desde a sua infância…

Quem acompanha a telenovela Caminho das Índias, da opositora da outra, assistiu a um inusitado comício político: Puja, intocável, disputa com Opasch, homem de casta, uma vaga parlamentar. Da casa de Opasch sumira um objeto de estimação, ligado à sua crença religiosa, a que se atribuiu roubo perpetrado por Hari, neto da oponente de Opasch, com que estava o tal objeto. Em face dos princípios que ditam as condutas morais daquele povo, aí estava a oportunidade de Opasch, denunciando publicamente o roubo, no palanque do comício, reverter, em seu favor, a eleição, que já considerava ameaçada pelo crescimento de sua oponente. Certo do roubo, estava decidido, e faria a denúncia. A oponente, orientada, para não expor, ainda mais, o menino, preferiu retirar a sua candidatura. É neste exato momento que o Brasil, que não lê, que não estuda, ficou sabendo distinguir as éticas. Anusha, neta de Opasch, em que se manifestou o luminoso sentimento do primeiro amor, esse que surge na madrugada da existência, vai ao ouvido do avô e lhe confessa que foi ela que deu aquele objeto ao menino: ele não o roubara! Opasch, então, revela-se não um político, mas um homem que se orienta por princípios morais: não tem porque medir conseqüência, a de colocar em risco a sua eleição, e revela toda a verdade: – esse menino não é um ladrão!
Não sei se essa, de fazer a distinção das éticas, era a intenção da autora, mas, pensando em demonstrar que o político deve agir baseado em princípios morais, o que é um erro, demonstrou, ao cabo, que a sua personagem não será nunca um político.
Escreveu, no ensaio Ética e Política, Norberto Bobbio, que há duas éticas: a dos princípios e a da finalidade. Esta, a da finalidade, é a que remete seu seguidor a perscrutar as conseqüências dos seus atos, antes da ação. A outra, dos princípios, é a que leve o seu seguidor a não se importar com as conseqüências dos atos que pratica, porque só os pratica se estiverem consonantes com os seus princípios morais.
Não há, aqui, argüir qual delas é a mais conveniente, porque não é esta a finalidade da Filosofia Moral. Bobbio nos deixa claro que é besteira ficar-se imaginando o político agir de acordo com a ética dos princípios… Escreveu, o eminente milanês: “O problema das relações entre ética e política é mais grave porque a experiência histórica mostrou, ao menos desde o contraste que contrapôs Antígona a Creonte, e o senso comum parece ter pacificamente aceitado, que o homem político pode se comportar de modo dissonante da moral comum, que um ato ilícito em moral pode ser considerado e apreciado como lícito em política, em suma, que a política obedece a um código de regras, ou sistema normativo, que não se coaduna e em parte é incompatível com o código de regras, ou sistema normativo da conduta moral”, e cita, no mesmo admirável texto, esta impiedade de Croce: “Outra manifestação da vulgar inteligência acerca das coisas da política é a petulante exigência que se faz de honestidade na vida política”. E por aí vai… Para encerrar esta despretensiosa inserção bobbiana, remato assim: “A ética política se torna assim a ética do político e, como ética do político e portanto ética especial, pode ter seus justificados motivos para aprovar uma conduta que o vulgo poderia ver como imoral mas que o filósofo vê simplesmente como o necessário conformar-se de indíviduo-membro à ética do grupo”. Por imediatamente contemporâneo, não autorizo nenhuma inferência, do que aqui escrevo, que possa me ligar a uma justificativa do que ora se passa, por exemplo, no Senado, porque aquilo é fruto de um sistema pernicioso e permissivo, que vem infelicitando esta República desde a sua infância…
Quem acompanha a telenovela Caminho das Índias, da opositora da outra, assistiu a um inusitado comício político: Puja, intocável, disputa com Opasch, homem de casta, uma vaga parlamentar. Da casa de Opasch sumira um objeto de estimação, ligado à sua crença religiosa, a que se atribuiu roubo perpetrado por Hari, neto da oponente de Opasch, com que estava o tal objeto. Em face dos princípios que ditam as condutas morais daquele povo, aí estava a oportunidade de Opasch, denunciando publicamente o roubo, no palanque do comício, reverter, em seu favor, a eleição, que já considerava ameaçada pelo crescimento de sua oponente. Certo do roubo, estava decidido, e faria a denúncia. A oponente, orientada, para não expor, ainda mais, o menino, preferiu retirar a sua candidatura. É neste exato momento que o Brasil, que não lê, que não estuda, ficou sabendo distinguir as éticas.
Anusha, neta de Opasch, em que se manifestou o luminoso sentimento do primeiro amor, esse que surge na madrugada da existência, vai ao ouvido do avô e lhe confessa que foi ela que deu aquele objeto ao menino: ele não o roubara! Opasch, então, revela-se não um político, mas um homem que se orienta por princípios morais: não tem porque medir conseqüência, a de colocar em risco a sua eleição, e revela toda a verdade: – esse menino não é um ladrão!
Não sei se essa, de fazer a distinção das éticas, era a intenção da autora, mas, pensando em demonstrar que o político deve agir baseado em princípios morais, o que é um erro, demonstrou, ao cabo, que a sua personagem não será nunca um político.
Fernando Guedes
23.08.2009
jul 16, 2009 - Poligrafia    3 Comments

As galinhas em holocausto…

É impressionante a insensatez com que certas questões de saúde pública são tratadas na mídia e como os “doutores” do presente se deixam influenciar por essa corrente de meias-verdades, para não correrem o risco do contraditório. Na medicina isto virou dogma desde muito. Já Miguel Couto, que não transigia com os princípios da boa técnica, advertia: “Abundância em medicina é penúria”!

É o que precisamente está ocorrendo com esse fenômeno que se convencionou chamar de “gripe aviária”, onde já não se comunica com clareza as coisas. No mesmo instante que falam de gripe aviária, falam de pandemia de influenza, sem esclarecer se serão as galinhas ou os humanos as vítimas da doença. Pelo que tenho visto, até agora, são as galinhas que estão sendo oferecidas em holocausto.

Do que estão falando afinal? Onde a diferença? Bem, a gripe humana (ou normal) é uma doença respiratória freqüente e aguda, autolimitada, causada pelo gênero A do orthomyxovirus (influenza), que está na origem das epidemias anuais. A gripe das aves, que foi identificada na Itália há século, é uma doença contagiosa, causada também pelo gênero A do orthomyxovirus, que infecta aves e porcos e que, quando raramente infecta o homem, não se transmite entre pessoas. Há 15 subtipos do vírus que podem ser encontrados nas aves, mas os casos detectados até o momento foram dos subtipos H5 e H7.

É sabido que aves selvagens aquáticas são consideradas reservatórios naturais desses vírus; como também se sabe que populações de galinhas domésticas são particularmente susceptíveis a eles e podem ser o veículo de epidemias de rápida propagação.

Os vírus não se propagam facilmente das aves para as pessoas. A transmissão se dá após um período prolongado e reiterado de contacto em espaços confinados com secreções respiratórias ou fezes de animais contaminados, tanto por contacto direto como indireto.

Em 1997, em Hong Kong, foi documentado o primeiro surto de infecção humana da gripe das aves. 18 pessoas foram infectadas pelo vírus H5N1. A transmissão se deu pelo contacto próximo de pessoas com aves infestadas. Em três dias, 1 milhão e meio de galinhas foram sacrificadas.

Em 1999, em Hong Kong, 2 crianças foram infectadas pelo vírus H9N2.

Em 2003, houve novo alarme quando um surto de gripe das aves pelo H5N1 infectou 2 duas pessoas de uma família que viajara ao sul da China. Neste mesmo ano, 1 pessoa se infectou com a cepa H9N2, em Hong Kong.

Em 2003, foi documentado que 83 pessoas, que trabalhavam em criação de galinhas, nos Países Baixos, foram infectadas pelo vírus H7N7. Todas as galinhas foram sacrificadas.

De 2004 a novembro de 2005, em 8 países da Ásia, 132 pessoas foram infestadas pelo vírus H5N5. Novamente, o sacrifício em massa de galinhas…

No presente ano, até 12/05/2006, em 10 países da Ásia, 64 pessoas foram infectadas pelo vírus H5N1. Mais galinhas ao sacrifício! Ainda bem que elas, no enlevo da procriação, se dão facilmente…

O que chama a atenção nesses surtos é que a transmissão está relacionada com o negócio das galinhas, portanto doença ocupacional, que bem poderia chamar-se “doença dos galinheiros”.       Não se registrou transmissão entre pessoas (salvo uma questionada transmissão limitada em profissionais de saúde sem nenhuma gravidade) e isto descaracteriza a possibilidade de uma pandemia de gripe das aves em humanos. Uma pandemia só pode se iniciar se as seguintes condições ocorrerem:

1. Surgimento de um novo subtipo de vírus influenza,

2. Esse subtipo infectar humanos e

3. Haver transmissão efetiva e sustentada entre humanos.

Os dois primeiros pré-requisitos para o inicio de uma pandemia foram atendidos por ocasião do aparecimento do subtipo H5N1, que ainda não atendeu ao último: não passa de homem a homem. O risco de que o H5N1 adquira tal capacidade não está descartada, mas não é certa. O vírus pode se valer de dois mecanismos para conseguir a capacidade de transmissão entre humanos: 1) por rearranjo, no qual se processa uma troca de material genético entre os vírus (humano e o das aves) no curso de uma co-infecção de uma pessoa. 2) por mutação, processo mais gradual, no qual a capacidade do vírus de se unir às células humanas cresce ao longo de subseqüentes infecções humanas. Enquanto isto não ocorrer, as galinhas pagarão o pato…  Porque estudos mostraram que os vírus H5N1 dos surtos atuais, quando comparados aos vírus dos surtos de 1997 e 2003, tornaram-se progressivamente mais letais em galinhas infectadas experimentalmente. Investigadores das OMS, a partir de avaliações do surto na Turquia, atestam que não há evidências, até o momento, em nenhum lugar, de que o vírus tenha conseguido a capacidade de disseminar-se facilmente entre humanos. Portanto, pandemia de gripe das aves em humanos é penúria de alguma abundância.

Pandemia de influenza humana é outra ciosa. Há quem diga que Hipócrates fizera menção a ela, mas fiquemos com a documentação científica disponível na literatura idônea. Dr. Frederick Hayden, da Universidade da Virgínia, fez este compêndios das pandemias de influenza humana:

ANO

CEPA

GRAVIDADE

1870

H2N8

MODERADA

1889

H3N8

GRAVE

1918

H1N1

MUITO GRAVE

1957

H2N2

GRAVE

1968

H3N2

MODERADA

1977

H1N1

LEVE

Adaptado do quando 332.1, do Capítulo 332, do Tratado de Medicina Interna – Cecil

Daí em diante não surgiram novos subtipos antigênicos da influenza A. Em vez disso, os subtipos HH1N1 e H3N2 têm circulado alternadamente. Será que o H5N1, das galinhas, adquirirá capacidade de se transmitir entre pessoas, para figurar no contexto da influenza humana e produzir a primeira pandemia do século XXI?  Como os dados históricos apontam que as pandemias de influenza surgem de 3 a 4 vezes por século, em média, é possível. Mas isto é apenas possibilidade. De mim, eu acredito mais na possibilidade de que essa pandemia seja causada pelo H1N1, que tem mais experiência em catástrofes humanas.

A OMS enquadra o fenômeno atual na fase 3 do alerta pandêmico: “infecção humana com novo subtipo, mas sem transmissão entre pessoas”.

Qual é, enfim, a contabilidade de tanto alvoroço? 115 mortes em 3 anos, o que dá uma média de 28 mortes por ano, em todo o mundo. Há outra muito mais expressiva, que desgraçadamente não desperta nenhuma atenção: só no Brasil morrem 6.000 pessoas (não galinhas) anualmente de tuberculose. A OMS há uma década declarou em estado de emergência a tuberculose, que segundo projeção sua matará 2 milhões de pessoas anualmente em todo o mundo. Cada caso de tuberculose pode ser tratado eficazmente com apenas R$ 70,00! E a malária? A malária… 300 milhões de pessoas a contraem anualmente em todo o mundo e, destes, cerca de 2 milhões pagam, com a vida, tributo a ela! Por que será que possibilidade desperta mais interesse do que realidade? 28 mortes anuais da gripe das galinhas mais atenção do que os 2 milhões de mortes anuais da tuberculose ou 2 milhões de mortes da malaria? Não sei… Será que não sei?!

Disseram-me que se a pandemia vier (pandemias influenza, enquanto esse vírus não equipar seu sistema de replicação com controle de qualidade, virão certamente!) nocauteará a economia do mundo… Pararão as fábricas, superlotarão os hospitais, prosperarão as funerárias… Evidente que a gripe das aves merece, na exata medida do que é, atenção das autoridades sanitárias e dos pesquisadores. Foras disto, com todo o respeito que as outras opiniões merecem, só nos resta enterrar as vítimas da tuberculose e da malária e oferecer galinhas em holocausto.

Fernando Guedes

18/05/2006

jun 23, 2009 - Poligrafia    No Comments

Gardênia

Não é a gardenia grandiflora,  alva flor, aromática e solitária; o jasmim-do-cabo. Sendo mulher, foi a flor humana que perfumou nossas fantasias juvenis, de um idílio platônico…

Foi na aurora da juventude, lá pela década de 70, que a conhecemos. Ela morava no Barris, numa casa da avenida General Labatut, próxima do hotel onde morávamos eu e Carlinhos, que também caiu de amores por ela. Sua beleza física não era invulgar, o que a tornava uma mulher comum, como tantas que conhecemos, mas irradiava tamanha simpatia que era impossível vê-la apenas com os olhos…

“Formosa, qual pintor em tela fina

Debuxar jamais pode ou nunca ousara;

Formosa, qual jamais desabrochara

Na primavera a rosa purpurina…”

A primeira confissão a se fazer é que nos apaixonamos por ela sem jamais tê-la namorado, e nem temos uma explicação para isso. A mim me parece que nos bastava o amor ideal, e inconscientemente não queríamos correr os riscos do amor real, aquele que impele o amante a não compreender o outro senão como ele gostaria que fosse. Por isso a admirávamos de longe, como se admiram as montanhas, que são sempre azuis.

De seu nome apenas sabíamos o homônimo da flor, e isso nos bastava. De onde era, desconhecíamos. Sabíamos que além dos estudos trabalhava numa companhia de aviação, por onde às vezes passávamos para admirá-la trajando aquela farda azul marinho, que realçava a alvura de sua pele. Era expansiva, alegre, espirituosa, risonha… Nunca a vi mal humorada; sempre sorrindo aquele sorriso franco, que deixava entrever os nitentes dentes, que semelhavam um colar de pérolas finas…

“Teu nome foi um sonho do passado;

Foi um murmúrio eterno em meus ouvidos;

Foi som de uma harpa que embalou-me a vida

Foi um sorriso d’alma entre gemidos!

Carlinhos sempre foi homem de muitos amores, e sua fidelidade a eles sempre me pereceu um tanto quanto infiel, o que não era sem razão, porque a razão de que muito ama é amar sem compromisso de posse, dar ao amor a liberdade voar de coração em coração sem ter a obrigação de aninhar-se em nenhum. Os grandes amantes só são fieis aos amores ideais, aqueles projetados na volúpia do espírito, por isso posso afirmar que o meu primo adotivo, sendo o que é, deve continuar fiel ao amor por Gardênia, como eu continuo, no plano da reminiscência, prisioneiro desse amor…

“Sonho de amor, estrela peregrina

Por céus onde se azula a primavera,

Rosa ideal de um Éden, que imagina

Quem se refoge na mais alta esfera…”

A vida nos rolou pelo inexorável declive do tempo, cada um seguiu o seu destino e a perdemos de vista. Que aconteceu a ela? Não o sabemos… Guardamos dela apenas a lembrança das horas de efêmera convivência, onde só tínhamos a preocupação de admirá-la, de nos deixar contaminar com a sua irradiante alegria, e nos embriagar com o perfume dessa flor-mulher que não nos sai da memória…

“O que é da minha gardênia,

Que é da minha branca flor?

Agora quem terá pena

Deste amor órfão de amor?

Dá-me a minha flor, morena,

Aquela branca gardênia…”

Fernando Guedes

Janeiro, 1999

jun 12, 2009 - Poligrafia    No Comments

12 de Junho: dia dos namorados e da vingança do beijo…

Viram que autoridades insensatas proibiram, em alguns países, o beijo, como medida preventiva da influenza H1N1… Tenho certeza que o mestre Estácio de Lima, onde estiver, protestou contra essa pequice… Mas, não foi somente isto, exorbitaram em tudo: nas providências, nos comunicados, na nomenclatura, na classificação, nas proibições, na quimioprofilaxia, no confisco de medicamento, na matança criminosa de suínos… Viram especialista (ditos infectologistas) lançarem opiniões ridículas, para garantir o seu “minuto global”. O mundo estava em risco, porque a “peste” ameaçava dizimar alguns milhões da sua população. O negócio (velho nome ressuscitado para a  atividade econômica) paralisaria, porque seus agentes (os que trabalham)  morreriam ou estariam hospitalizados. Escolas, restaurantes, casas de diversão, shoppings etc. cerrariam suas portas… Planos de contingência foram acionados… Somados os milhões gastos desnecessariamente ao lucro cessante de muitos setores econômicos, que tiveram suas atividades atingidas pela irresponsabilidade das ações, o prejuízo é incalculável!

Vejam, agora, depois do nocaute à cidade do México, o que estão fazendo com Buenos Aires! Lamento por ela já não possui, vivo, a Enrique Santos Discépolo, para dizer-lhe, a essas autoridades insensatas, isto:

¡Hoy resulta que es lo mismo

ser derecho que traidor!…

¡Ignorante, sabio o chorro,

generoso o estafador!

¡Todo es igual!

¡Nada es mejor!

¡Lo mismo un burro

que un gran profesor!

No hay aplazaos

ni escalafón,

los inmorales

nos han igualao.

Si uno vive en la impostura

y otro roba en su ambición,

¡da lo mismo que sea cura,

colchonero, rey de bastos,

caradura o polizón!…

Tudo é igual, vivemos lambuzados num merengue de imposturas; num reinado de dublês e de farsantes onde a confusão de ordens é a ordem… Não há solução, porque o mundo se imbecilizou e os costumes se deturparam. Invertem-se os valores, para valer a superficialidade do conhecimento: qualquer um serve para assumir posição importante, desde que seja um comandado do sistema dominante, e a ele dedique fidelidade perpétua. Desprezam o saber, para valer a incultura e aceitar a colonização intelectual…

12 de junho, dia dos namorados, passa a ser um dia ainda maior, porque será, de agora em diante, também conhecido como o dia da vingança do beijo, cuja idéia já encaminhei, por falta de melhor pauta, ao Senado Federal, para decretação oficial… Foi em 12 de junho que a taxa de letalidade de influenza H1N1 se desmoralizou, inferiorizando-se à da influenza sazonal: 0,49%.

A influenza H1N1, como vê, não supera, em termos de letalidade, a influenza sazonal: beijem, pois, à vontade, como diz, na canção, a inesquecível Maria Grever:

Bésame con un beso enamorado

Como nadie me ha besado, desde el dia en que nací…

Porque nunca fez, nem fará mal algum… Quanto a Buenos Aires, um dos meu s amores, com ou sem gripe, deixo que Ferrer fale por mim:

¡Loco! ¡Loco! ¡Loco!

Cuando anochezca en tu porteña soledad,

por la ribera de tu sábana vendré

con un poema y un trombón

a desvelarte el corazón.

Fernando Guedes

Riacho de Santana, 12/6/2009

12 de Junho: dia dos namorados e da vingança do beijo…
Viram que autoridades insensatas proibiram, em alguns países, o beijo, como medida preventiva da influenza H1N1… Tenho certeza que o mestre Estácio de Lima, onde estiver, protestou contra essa pequice… Mas, não foi somente isto, exorbitaram em tudo: nas providências, nos comunicados, na nomenclatura, na classificação, nas proibições, na quimioprofilaxia, no confisco de medicamento, na matança criminosa de suínos… Viram especialista (ditos infectologistas) lançarem opiniões ridículas, para garantir o seu “minuto global”. O mundo estava em risco, porque a “peste” ameaçava dizimar alguns milhões da sua população. O negócio (velho nome ressuscitado para a  atividade econômica) paralisaria, porque seus agentes (os que trabalham)  morreriam ou estariam hospitalizados. Escolas, restaurantes, casas de diversão, shoppings etc. cerrariam suas portas… Planos de contingência foram acionados… Somados os milhões gastos desnecessariamente ao lucro cessante de muitos setores econômicos, que tiveram suas atividades atingidas pela irresponsabilidade das ações, o prejuízo é incalculável!
Vejam, agora, depois do nocaute à cidade do México, o que estão fazendo com Buenos Aires! Lamento por ela já não possui, vivo, a Enrique Santos Discépolo, para dizer-lhe, a essas autoridades insensatas, isto:
¡Hoy resulta que es lo mismo
ser derecho que traidor!…
¡Ignorante, sabio o chorro,
generoso o estafador!
¡Todo es igual!
¡Nada es mejor!
¡Lo mismo un burro
que un gran profesor!
No hay aplazaos
ni escalafón,
los inmorales
nos han igualao.
Si uno vive en la impostura
y otro roba en su ambición,
¡da lo mismo que sea cura,
colchonero, rey de bastos,
caradura o polizón!…
Tudo é igual, vivemos lambuzados num merengue de imposturas; num reinado de dublês e de farsantes onde a confusão de ordens é a ordem… Não há solução, porque o mundo se imbecilizou e os costumes se deturparam. Invertem-se os valores, para valer a superficialidade do conhecimento: qualquer um serve para assumir posição importante, desde que seja um comandado do sistema dominante, e a ele dedique fidelidade perpétua. Desprezam o saber, para valer a incultura e aceitar a colonização intelectual…
12 de junho, dia dos namorados, passa a ser um dia ainda maior, porque será, de agora em diante, também conhecido como o dia da vingança do beijo, cuja idéia já encaminhei, por falta de melhor pauta, ao Senado Federal, para decretação oficial… Foi em 12 de junho que a taxa de letalidade de influenza H1N1 se desmoralizou, inferiorizando-se à da influenza sazonal: 0,49%.
A influenza H1N1, como vê, não supera, em termos de letalidade, a influenza sazonal: beijem, pois, à vontade, como diz, na canção, a inesquecível Maria Grever:
Bésame con un beso enamorado
Como nadie me ha besado, desde el dia en que nací…
Porque nunca fez, nem fará mal algum… Quanto a Buenos Aires, um dos meu s amores, com ou sem gripe, deixo que Ferrer fale por mim:
¡Loco! ¡Loco! ¡Loco!
Cuando anochezca en tu porteña soledad,
por la ribera de tu sábana vendré
con un poema y un trombón
a desvelarte el corazón.
Fernando Guedes
Riacho de Santana, 12/6/2009
maio 4, 2009 - Poligrafia    No Comments

Dr. Osvaldo, que conheço bem…

No nosso último encontro, há uma semana, na casa de Magnavita, Paulo nos falou da comemoração do centenário de Dr. Osvaldo Devay, que a família está preparando. Para mim, perguntou-me: – Você, que é um admirador de Dr. Devay, por que não escreve alguma coisa sobre ele?

Seja, nesta sintética escritura, ele louvado! Conheci-o já tarde, e tive somente o privilégio de poucos encontros pessoais com ele. Ficou-me, dessa fugaz relação, uma imagem admirável, que o seu sorriso discreto, como são os sorrisos francos, gravou na memória da minha lembrança, na consciência do meu afeto. Continuo, contudo, a encontrá-lo, constantemente, nas páginas de sua obra literária, que leio constantemente, alumiada pela claridade do rastro de luz que nos deixou… Este, o polígrafo, é o que conheço bem…

A minha admiração não decorre da intimidade do conhecimento, porque, como já disse, o conheci tarde e tivemos raros encontros pessoais. Decorre da coincidência de amores comuns: Castro Alves, o maior de todos, Camões, e o que nos une aos outros: Afrânio Peixoto. O estilo literário de Dr. Devay, pela elegância do vocabulário, pela nobreza das frases, pela síntese, pelo gênero da poligrafia, é o de Afrânio, que eu tanto admiro e sigo. Se este disse, no Breviário da Bahia, que Rui, na oratória, seguiu Vieira, que seguiu Cícero, ouso dizer, para engrandecê-lo, ainda mais, que Dr. Devay, na poligrafia, seguiu Afrânio. É escola!

O pequenino prefácio do seu Camões lembra, com clareza, o dos Ensaios Camonianos, de Afrânio. No seu Noturno, que acho que fora intencionalmente escrito, para ser lido com Chopin em fundo musical, encontro, no capítulo exta-índice, Iayá, o seu auto-retrato, uma oração escrita com pena transcendente… “Sinto, e me pesa, que ela começa a desviver”… O emprego deste verbo, com tamanha elegância de estilo, é raro na literatura brasileira, apenas nestes dois lugares o encontro igual: “Organização desfibrada de adversários que desviviam há três meses” (EUCLIDES DA CUNHA) e “A hera dos castos afetos desvive, murcha e esfolha-se” (RUI). Só ao amoroso é concedido desprendimento desta grandeza, que é um voto: “Não me arrebate mais nunca outra alma da minha alma. Antes disso, me extinga a mim a vida”. Deus, ao que sei, não ignora voto de alma fiel, o acatou, colocando, no seu caminho, como diria Fagundes Varela, a soberana dos sinistros impérios de além-mundo…

Encontro, ainda no Noturno, outro capítulo que a mim me fala de perto: Viagens na Minha Terra. Declaração de amor a Portugal de Afrânio Peixoto, que o homenageado tanto admirava, a ele, Afrânio, e ao livro monumental, que são visões fugidias do espaço e do tempo. Ele o declara:

Ao autor devoto, desde jovem, comovida e afetiva admiração; quanto a Portugal, sinto que faz vivas em mim, entranhadas, remotas e atávicas saudades”.

Declara mais, que pretendia conhecer Portugal, incitado por essas saudades atávicas e pela leitura reiterada de Viagens na Minha Terra, a este, de Afrânio, quanto o de mesmo título, de Almeida Garret, assim:

Os dois livros me valeram balsâmico toque em ferida aberta, pois mantenho, velhos e intensos, dois propósitos de realização ainda protraída, que, oxalá não evanesçam como sonhos vernais que hibernam…”

Dr. Devay, contudo, não teve a oportunidade de matar as suas saudades… Este sentimento, que o homenageado experimentava, experimentei-o também, mas tive a ventura de conhecer Portugal, depois de ter lido e relido Viagens na Minha Terra… Como é bonito Portugal, depois dessa leitura!

O Capítulo seguinte, Parábolas, também livro de Afrânio Peixoto, pequenos trechos de filosofia e reflexão; de conceitos morais e humor, são, em Dr. Devay, os Pedaços, que, se fossem todos conservados e editados, dariam, penso, dois volumes, cujos correspondentes, na obra de Afrânio, são: o já citado e É.

Há tanto Afrânio em sua obra… Seu Camões diz que os Ensaios Camonianos, do outro, trazem inesgotável filão de ouro… Seu Castro Alves fala da Vida Efêmera e Ardente de Castro Alves, do outro, e no Ofertório, do seu, lê-se este primor de oferenda:

E também assentem à mesa das oblatas do

Pobre, os nomes baianos, aureolados, de Pedro

Calmon e Afrânio Peixoto, com, ainda,

destaque especial de dois monumentos da

Bahia: O Livro das Horas, e Breviário da Bahia.

A beleza está precisamente em considerar monumentos da Bahia o Breviário da Bahia e O Livro de Horas, os dois últimos filhos de Afrânio, dedicados à Bahia, para serem, como disse o homenageado, livros de cabeceira dos brasileiros, notadamente dos baianos.

Para ser fiel ao estilo, convém que eu procure encerrar esta homenagem, com faria Afrânio Peixoto. No Livro de Horas, disse ele, sobre Manoel Vitorio: Deixou um traço de luz, que perdura, como o dos meteoros, que deslumbram ainda depois da passagem. Esta é a imagem que me ficou de Dr. Devay, só que a passagem, para proveito da Bahia, dos colegas, dos amigos, dos familiares, foi mais lenta, como a dos cometas, deixando-nos deslumbrante rastro luminoso, que perdurará, sempre!

Fernando Guedes

4/5/2009

ago 3, 2005 - Poligrafia    No Comments

Até agora!

O que afirma o deputado Roberto Jerfferson, contesta do deputado José Dirceu, que é contestado, no que afirma, por Jerfferson. Isto é, está a nação diante de uma mentira. Mas, que há de novo em mentir-se nesta desgraçada nacionalidade? Absolutamente nada! Esta República, que foi fruto de uma mentira, degradou-se nos descaminhos da inverdade, e esta tem sido, há mais de um século, a prática dos nossos políticos.

Tudo, exatamente tudo, nesta República é mentira, quem o afirmou foi um insuspeito republicano de primeira hora, Rui Barbosa, em 1919. Disse a águia de Haia, ao se referir à prática republicana brasileira: “Mentira nas promessas. Mentira nos programas. Mentira nos projetos. Mentira nos progressos. Mentira nas reformas. Mentira nas convicções. Mentira nas transmutações. Mentira nas soluções. Mentira nos homens, nos atos e nas coisas. Mentira no rosto, na voz, na postura, no gesto, na palavra, na escrita. Mentira nos partidos, nas coligações e nos blocos. Mentira dos caudilhos aos seus apaniguados, mentira dos seus apaniguados aos caudilhos, mentira dos caudilhos e apaniguados à Nação. Mentira nas instituições. Mentira nas eleições. Mentira nas apurações. Mentira nas mensagens. Mentira nos relatórios. Mentira nos inquéritos. Mentira nos concursos. Mentira nas embaixadas. Mentiras nas candidaturas. Mentira nas garantias. Mentira nas responsabilidades. Mentira nos desmentidos. Mentira geral. O monopólio da mentira. Uma impregnação tal das consciências pela mentira, que se acaba por se não discernir a mentira da verdade, que os contaminados acabam por mentir a si mesmos, e os indenes, ao cabo, muitas vezes não sabem se estão, ou não estão mentindo. Um ambiente, em suma, de mentiraria, que, depois de ter iludido ou desesperado os contemporâneos, corre o risco de lograr ou desesperar os vindouros, a posteridade, a história, no exame de uma época, em que, à força de se intrujarem uns aos outros, os políticos, afinal, se encontram burlados pelas suas próprias burlas, e colhidos nas malhas da sua própria intrujice, como é precisamente agora o caso”. Será preciso dizer mais uma palavra?! Talvez: mentira de Jefferson a Dirceu, mentira de Dirceu a Jefferson. Mentira de Lula à nação, mentira da nação a Lula… Mas, estou dizendo a mesma coisa! Sim, eis a nossa República: ontem e hoje, que se resume nestas frases proferidas da tribuna do Senado Federal, por Rui Barbosa, na sessão de 17 de dezembro de 1914:

“A opinião pública está inquieta por ver que tem havido até agora no seio do governo elementos interessados em obstar a responsabilidade dos culpados.”

“Alguma coisa, porém, há de que todos nós sabemos; é que os responsáveis por esses crimes estão vivos; é de que eles se acham dentro do território do nosso País, sujeitos à ação das nossas leis; é que os documentos comprobatórios desses crimes se acham no arquivo público, nas secretarias, nas mãos do Governo Federal; é que a justiça não se instaurou, porque o Governo Federal não permitiu, porque o Governo Federal abafou esses documentos, porque o Governo Federal era até ontem cúmplice nesses crimes.”

“A falta de justiça é o grande mal da nossa terra, o mal dos males, a origem de todas as nossas infelicidades, a fonte de todo nosso descrédito, é a miséria suprema desta pobre nação. A sua grande vergonha diante o estrangeiro, é aquilo que nos afasta os homens, os auxílios, os capitais”.

“A injustiça desanima o trabalho, a honestidade, o bem; cresta em flor os espíritos dos moços, semeia no coração das gerações que vem nascendo a semente da podridão, habitua os homens a não acreditar senão na estrela, na fortuna, no acaso, na loteria da sorte, promove a desonestidade, promove a venalidade, promove a relaxação, insufla a cortesania, a baixeza, sob todas as suas formas.”

“De tanto ver triunfar as nulidades, de tanto ver prosperar a desonra, de tanto ver crescer a injustiça, de tanto ver agigantarem-se os poderes nas mãos dos maus, o homem chega a desanimar-se da virtude, rir-se da honra, a ter vergonha de ser honesto. Essa foi a obra da República nos últimos anos.” Se ele fosse vivo diria: até agora!

Fernando Guedes

Salvador, 3/8/2005

maio 30, 2005 - Poligrafia    2 Comments

Tabaco: réu de morte ou vítima da hipocrisia humana?

“Fumar es un placer genial,  sensual…

Dame el humo de tu boca,

dame que en mí passión provoca…”

Do tango Fumando Espero, de J. Viladomat Masanas

“Pobre moreno
Que de tarde no sereno
Espera a lua no terreiro
Tendo o cigarro por companheiro.”

Do samba-canção No rancho Fundo, poema de Lamartine Babo e música de Ary Barroso.

No dia em que o homem tiver juízo se interessará mais em escrever a história das coisas, do que a sua própria história, que é menos interessante. Se o humano, mesmo criminoso, merece defesa, por que não há de merecer a coisa perigosa? Eu acho que merece, e aqui faço a defesa do tabaco, para que ele possa ser condenado justamente.

“A história da medicina tem sido uma constante substituição de mentiras por falácias”, e uma das falácias comum nestes tempos atuais é a execração de certos hábitos, sem ao menos considerar as suas virtudes. Que o tabaco faz mal à saúde, não é novidade. Está relacionado com o câncer de pulmão, com a bronquite crônica, com infarto do coração, do cérebro, etc., em muitas pessoas. Se a Veja o ensina, não será preciso mais nada, neste mundo de nulidades… Mas, o que não se ensina, e acho até que não há necessidade de se ensinar, é que o tabaco não causa nada disso em muitas outras pessoas. O complicado mecanismo fisiopatológico de câncer, falo do câncer porque, não fora ele, a situação seria diversa, não está de todo esclarecido; portanto o tabaco surge, neste canário, através de deduções aproximadas, de relação de causa e efeito. A natureza histológica do carcinoma de pulmão do fumante é a mesma do carcinoma de pulmão do não fumante, penso. São exatamente a mesma coisa! Mas os estatísticos demonstram, contudo, que quem fuma tem maior chance de desenvolver o câncer de pulmão. Não vamos, por precaução, duvidar deles, e se esqueçam, por favor, que, segundo eles mesmos, todos os brasileiros comem, em média, um frango por semana… O produto da combustão do tabaco, aspirado, faz mal, não há dúvida!

Afirmar, contudo, que o hábito de fumar o tabaco não traz nenhum benefício, é o outro exagero da questão. Ninguém meteria fumaça no peito se isto não lhe causasse algum bem-estar, algum prazer, que é o benefício perseguido pelo fumante; é, em suma, o que lhe basta. Mas isto já não se respeita, porque a sociedade autocraticamente decidiu que ninguém deve fumar, transformando o fumante numa espécie de pária, para o qual olhares desabonadores e resmungos dissimulados são o vale de isolamento e de segregação. É o anátema das minorias…

Se o tabaco é um problema mundial de saúde pública, como demonstraram os representantes de numerosas nações, em recente assembléia da ONU, que aprovaram uma resolução condenando a incauta solanácea, o Brasil tem muito a ver com isto, porque o tabaco difundiu-se pelo mundo a partir  daqui. Antes de 1556, relata Damião de Góis, fora a planta levada do Brasil a Portugal, por Luís de Góis. André Thevet, em 1556, diz que, do Brasil, a levara a Paris, a Catarina de Médicis, antes mesmo de Jean Nicot, que, só em 1559, de Lisboa levara também a Paris, cultivando-a no jardim real, razão porque Lineu lhe daria o nome de Nicotiana tabacum, donde nicotina, etc. Já, em 1556, Hans Staden, em seu livro Viagem ao Brasil, publicou gravuras de índios fumando, em conselho, enormes trabucos de folha de palma, cheias de folhas secas de tabaco, precursão dos nossos modernos charutos, foi o que, no Breviário da Bahia, escreveu Afrânio Peixoto.

“Os nossos antepassados chamavam-lhe pitum, donde pitar, pito, pitada, que é a prise francesa, de tabaco torrado, “tabaco pisado”, tabaco em pó (rapé ou torrado), que se acondiciona em tabaqueira, boceta ou cornimboque, para ser aspirado, pelo nariz. Esse hábito resultou nos lindos lenços chitados, de Alcobaça, em Portugal, próprios para limpar os dedos e o nariz, do tabaco”.

“Os nossos antigos diziam “beber o fumo” por “tragar” a fumaça, como se diz hoje, como ainda também se diz “mascar” fumo, isto é, pô-lo em fragmentos na boca, deglutindo a saliva, que o dissolve. Ainda havia, e há, os que esfregam os dentes com um troço de fumo de corda, para os assear, não sem engolir o que resulta dessa operação, nem sempre limpa”.

É, também, brasileira a acepção pudenda de tabaco, que, por contido na boceta, de inspiração erótica, que, pela troca da primeira vogal, já emprestara nome à genitália feminina, fixando, depois, a significação chula do próprio conteúdo: “tabaco” é essa mesma genitália.  Em Bangüê, de José Lins do Rego, lê-se: “Francelino tinha passado nos peitos a menina de Zé Gonçalo. Ela dera o tabaco.” Daí, “tabaco da Bahia”, que não é o bom fumo do recôncavo, senão a boa genitália das baianas. Somos espirituosos até nessas coisas, que fazer!?

O tabaco sempre dividiu opiniões: defensores e detratores, desde muito, se debateram acerca de benefício e de malefício. Desde logo a Igreja o considerou o único dos modernos pecados mortais, que devia ser ajuntado à lista dos tradicionais. O Padre Manoel da Nóbrega, já em 1550, se abstinha, como os outros jesuítas, “por não se conformarem com os infiéis que muito o apreciam”. O nosso primeiro Bispo, Dom Pero Fernandes Sardinha excomungou ao donatário do Espírito Santo, Vasco Fernandes Coutinho, por fumar. O papa Urbano VIII estenderia a excomunhão aos religiosos que o fizessem, em 1624, e assim por diante… mais uma vez Afrânio.

O tabaco, queiramos ou não, tem a sua história, que não é somenos, portanto tenham cuidado com essas campanhas, que são mais difamatórias, que educativas. Apontem o crime, sem denegrir o criminoso, porque até o criminoso tem o seu direito protetor.

Num cartaz, reclamo da atual campanha contra o tabaco, a fabricante do cigarro é uma bruxa. Isso não só é de um mau gosto terrível, como um insulto. Já que não se fabricam mais cigarros manualmente, senão em modernas máquinas, que produzem milhares por minuto. De manual restaram os charutos, que são fabricados, via de regra, por mulheres, que com a sua delicadeza manipulam as folhas do tabaco, esticando-as nas suas próprias coxas, para o deleite dos apreciadores do seu produto (Havana, Montecristo, Dona Flor, etc.). Baianas ou cubanas, belas sempre, elas nada têm de bruxa. Aliás, essas campanhas, por não respeitarem as individualidades, por ignorarem a sociologia do tabaco, a sua história, já estão exorbitando do razoável: estão cada vez mais insuportáveis…

Fernando Guedes

30/05/2003

maio 7, 2005 - Poligrafia    No Comments

Tanatoética, ou a Ética da meta

“Minha vida começou pela extinção. É estranho, mas é assim. Desde os primeiros mminutos em que tive consciência de mim, senti que me apagava.”

Ivan Gontcharov

A verdadeira Filosofia é meditar sobre a morte

Dos azulejos do Convento de São Francisco – Salvador – Bahia (1743 – 1746)

Não hei de lhes apresentar um ensaio filosófico ou, muito menos, um texto de exegese ontológica. Muito longe de ser uma tese. Escrevi, com a precariedade da minha pena, linhas despretensiosas sobre o que penso acerca da Ética, para atender não à minha vaidade de aprendiz de filósofo, mas à gentil provocação de uma amiga, que insiste em compreender-me, e, assim, encontra, nas minhas idéias, alguma utilidade intelectual. A sugestão foi para que eu falasse de filosofia, ética e medicina, o que, de certa forma, soa-me como uma excitante provocação. Ora, partidário do time de Bernard Shaw, Voltaire, Molière e Gordon, como bem o sabe minha amiga, acho que a medicina é um culto a reformar, mas não me acho à altura de ser-lhe o reformador, nem sinto que eu tenha necessidade de fazê-lo. Como, por outro lado, não tenho a pretensão de laçar diatribes sobre a crença de ninguém, falarei dela apenas o suficiente para construir o elo que a liga aos demais temas. Falar de ética é filosofar; portanto, filosofo falando de ética.

Com o modelito em moda, a bioética, – convém lembrar Afrânio Peixoto: os médicos e as mulheres são as criaturas mais sujeitas à moda, esse tirânico fenômeno sociológico – que já foi argüida de “ponte para o futuro”, que eu não alimento a quimera de cruzar, posto que, na minha inexorável sucessão de agoras, não me hei de importar, porque me bastam as preocupações do presente.

Tudo o que sei sobre ela só me fez agravar a certeza de que o melhor que possa fazer, neste mundo em que os “Crítons” vivem a imolar galos em honra de Esculápio, em total contradição com os ensinamentos de Sócrates, é mergulhar nas reconfortantes águas de uma fonte chamada Monteigne, e especular sobre a ética da meta, educando-me a morrer. Portanto, já que o Dr. Van Potter engendrou o termo bioética, pensando que estava sendo original, eu, rejeitando o senso comum, e totalmente despojado do complexo de inferioridade, fico com a ilusão que cunhei tanatoética, que, se não é mais importante, é, pelo menos, por consernir à morte, mais definitivo.

À guisa de conceito

Nunca se falou tanto de ética, como nos tempos atuais, e nunca se deturpou tanto o conceito de ética, a ponto de ter proliferado, principalmente no mundo empresarial, essa contradição insólita: os redatores de “códigos de ética”. Não tenho conhecimento de nenhum filósofo que se desse ao despautério de escrever “código de ética”, até porque o filósofo, ainda que estravagante, pensa… Ética é disciplina teórica, capítulo da filosofia, que, em compêndio, trata do estudo da moral. Deduzimos daí que “os problemas éticos caracterizam-se pela sua generalidade e isto os distingue dos problemas morais da vida cotidiana, que são os que se nos apresentam nas situações concretas”. Não há dúvida de que a ética pode colaborar para fundamentar ou justificar certo padrão de comportamento moral, revelando certo caráter prático, o que explica porque se tentou ver nela uma disciplina normativa, cuja função primordial seria indicar o comportamento melhor do ponto de vista moral. Eis a origem do esquecimento do caráter propriamente teórico da ética, que aqui, nestas parcas linhas, se pretende relembrar: “a função fundamental da ética é a mesma de toda teoria: explicar, esclarecer ou investigar uma determinada realidade, elaborando os conceitos correspondentes”.  Ninguém ignora que a realidade moral varia com o curso da história, com a evolução da sociedade, e, com ela, variam os seus princípios e as suas normas. Pode-se negar, por acaso, que em determinada época histórica a escravatura foi moralmente aceita entre nós? Que a economia desta nação sustentava-se nela? Dominava uma moral servil, em que até os próprios escravos, se deixando influenciar por ela, consideravam a si próprios como peças. Assim, quem haveria de dizer que manter uma senzala era antiético? Fluiu o tempo, pelo seu inexorável declive das épocas, e, pouco a pouco, foi-se formando, na consciência dos escravos, a idéia de liberdade, e chegaram, em muitos casos, a deflagrar memoráveis lutas contra seus agressores, contribuindo para a transformação da consciência  social, que passou a ver, na escravidão, uma ignomínia, com a qual já não se podia mais conviver, desembocando na moral dos homens livres. É que, com a história, mudou a realidade moral, que, por sua vez, implicou o ajustamento das normas éticas correspondentes. A ética da escravatura já não explicava a moral da abolição. Que a abolição foi equivocada nos seus desdobramentos, deixando os escravos ao abandono, com cartas de alforria nas mãos, quando já não tinham sequer força para prover o próprio sustento, é outra coisa, que suscita sua específica especulação.

Não confundamos ética com moral, e que fique claro que a ética não cria a moral. “O valor da ética como teoria está naquilo que explica, e não no fato de prescrever ou recomendar com vista à ação em situações concretas”. É certo que toda moral supõe princípios, normas ou regras de comportamento, mas não é a ética que os estabelece, senão procurar determinar-lhes a essência, investigar-lhes a origem, desvendar a natureza dos juízos morais, teorizar sobre as circunstâncias da moral vigente numa determinada sociedade. A moral, por seu turno, não é ciência, mas objeto da ciência, que a estuda e investiga, que, em última análise, é a ética. Portanto, não sendo a ética a moral, ela não pode ser reduzida, como muitos o pretendem, com ridículos códigos, a um conjunto de normas e prescrições. Somente quero dizer que a relação da ética com a moral se esclarece no relacionamento de uma ciência específica e seu objeto. Não há aqui se apelar para a similitude etimologia dos termos: moral e ética – do latim mos e do grego ethos – , porque o esquecimento etimológico, fenômeno comuníssimo em todas os idiomas,  já cuidou de separá-los, há muito.

Exercitando a ética

Qual a natureza da obrigação moral? De onde ela provém?  Responder a estas questões é exercitar a ética. Marcel Conche, nesse passo, assim escreveu: por que me sinto obrigado a fazer o que contraria minha propensão natural a viver para mim e se choca com meu desejo de compor as ocupações de meus dias de acordo com meu gosto ou meu prazer? De alguns anos para cá, diz ele, estou sujeito a viver constantemente ao lado de minha esposa doente. Estou sujeito, ou melhor: eu me sujeitei e me sujeito, responde o filósofo, pois não poderia aceitar que ela vá para uma clínica ou um asilo para pessoas doentes ou idosas. Se aceitasse isso, justifica, eu me sentiria em falta com ela. Sinto-me obrigado a fazer que ela fique o melhor possível acompanhada e ajudada. No entanto, vários desejos e projetos que eu teria são contrariados com isso. De onde vem, pois, esse sentimento de obrigação, tão forte que arrasta até mesmo as propensões pessoais e egoístas?

Dirão que amo minha mulher ou que seu estado de fraqueza, de dependência, de impotência, me inspira compaixão. Ele não contesta nenhuma dessas afirmações e admite que, nesse exemplo de devoção, é difícil isolar o sentimento de obrigação dos sentimentos conexos de amor e piedade.

Eis a obrigação de fazer, a obrigação moral, que os estóicos a entenderam exemplarmente: “podemos fazer aquilo a que nos estimamos obrigados com total indiferença afetiva e até sem desejo”.

O médico dispensa cuidados a seu paciente é esperando que tais cuidados vão ajudá-lo, senão na cura, pelo menos a ter uma razoável qualidade de vida durante a sua doença. Nenhum médico, ainda que não desejasse que o paciente vivesse, deixaria de fazer o que deve ser feito, sem amor e sem piedade. A moral é indiferente ao amor, à piedade e ao desejo do bem. Ela, nesse sentido, é auto-suficiente, prescinde de qualquer sentimento, que não seja a sua própria obrigação.

Acabei de dizer, ut retro, que a obrigação moral brota do recesso do ser, por causa de uma convicção interior e não por uma simples conformidade exterior, impessoal e forçada, como ocorre com o comportamento jurídico e no contrato social. A liberdade de escolha é condição da obrigação moral. Não é por me sentir obrigado a fazer isto ou aquilo, que vou fazê-lo, nem por sentir a obrigação de não fazer o que me tenta que não vou fazer. A obrigação não acarreta o ato dela mesma e sem que eu tenha de querê-lo. Para que aquilo a que me sinto obrigado se consume, é preciso que a minha vontade admita a obrigação.

Deparamo-nos, neste mundo de superficialidades, com a constante confusão conceitual entre obrigação moral e obrigação social. A pressão da sociedade sobre o indivíduo não suscita senão uma obrigação social: “como respeitar superiores, observar os usos, como responder a uma carta, agradecer por um serviço prestado, felicitar por ocasião de acontecimento feliz, presentear, acompanhar enterro de um próximo, expressar condolências, cumprimentar, estender a mão em cortesia etc.,” que nada tem a ver com a obrigação moral. Este exemplo de Marcel Conche esclarece a diferença: Quando os prussianos invadiram a cidade de Orléans, em dezembro de 1870, soldados inimigos bateram à porta de uma francesa e lhe confiaram um dos seus feridos. Ao despir o ferido, para lhe fazer o necessário curativo, viu uma corrente de relógio presa a uma das botoeiras da túnica. Retirou o relógio e se deparou com a lembrança que dera a seu filho, que combatia entre os franco-atiradores, e, tomada por horror e desespero, desmaiou. Ela cuidava do assassino do seu filho! Recobrada a consciência, irrompeu em soluços e, corajosamente, termina o curativo começado. Quem há de dizer que o curativo que aquela mãe fez no assassino do seu próprio filho foi motivado por uma obrigação social? É insofismável que aquele curativo foi terminado em decorrência de uma exigência de outra ordem, que, em última análise, é a obrigação moral, que àquela francesa se apresentou como um comportamento livre e obrigatório.

Espero ter deixado claro, até aqui, que a obrigação moral pressupõe necessariamente uma livre escolha, logo, quando o agente se vê privado da livre escolha, não há que exigir-se dele uma obrigação moral. Convém refletir, contudo, que nem toda possibilidade de se escolher livremente encerra, em si mesma, uma significação moral. Escolher eu entre assistir a um filme ou ir à praia evidencia simplesmente a minha liberdade de escolher, que não se relaciona com uma obrigação moral, porque nenhuma sanção moral me pode ser imposta pelo fato de ter preferido o cinema à praia; a praia ao cinema. Porém, se minha escolha recai entre ir ao cinema ou visitar um paciente ao qual prometi assistir na mesma hora, a minha escolha é condição necessária inescusável para o cumprimento da obrigação moral assumida.

Estar-se obrigado moralmente a cumprir uma promessa que se pode cumprir, dado que nenhuma causa exterior impeditiva obstaculize a ação do agente, suscita a obrigação moral. A aparente limitação da liberdade, em ter que escolher cumprir a promessa que fiz a meu paciente é somente aparência, por que sou eu quem escolhe decidir limitá-la, para afirmar a liberdade indispensável que se possa imputar-me uma obrigação moral, que estaria excluída se a limitação fosse imposta à minha revelia, de fora.

Sobre as teorias da obrigação moral

Sou tentado a não fugir à monomania de classificar as coisas, mas, se o faço, é apenas para tornar a idéia mais fácil de ser assimilada, e não para colocar limite ao pensamento.

Classificam-se essas teorias em dois grupos: deontológicas e teleológicas. Entende-se por deontológica (de deón = dever) aquela teoria que não condiciona a obrigatoriedade de uma ação às suas próprias conseqüências. Ao contrário, é teleológica (de télos = fim) aquela cuja obrigatoriedade de uma ação deflui exclusivamente de suas conseqüências. Para melhor demonstrar a diferença entre ambas, valho-me de um sugestivo exemplo do mexicano Adolfo Vázquez, a quem abro aspas: “suponhamos que um doente grave, confiando na minha amizade, pergunta-me sobre o seu real estado, dado que, segundo perece, os médicos e os familiares lhe ocultam a verdade: o que devo fazer neste caso? Enganá-lo ou dizer-lhe a verdade? De acordo com a doutrina deontológica da obrigação moral, devo dizer-lhe a verdade, sejam quais forem as conseqüências: mas, se me atenho à teoria teleológica, devo enganá-lo tendo em vista as conseqüências negativas que podem resultar, para o doente, do conhecimento do seu verdadeiro estado”.

Sem embargo de não submeter a deontologia a obrigatoriedade do ato moral às suas conseqüências, como já o disse, é possível identificar, neste postulado, certo relativismo, que se pode deduzir da visão sartreana do ato moral. Partindo-se do princípio de que a liberdade é a fonte de valores por excelência, admite essa filosofia que a conseqüência do ato pode adquirir caráter deontológico. Assim, exemplificando, entre duas possibilidades de ação que se nos oferecem, o fundamental é comprometer-se com uma delas. Ora, comprometer-se é, em suma, escolher, e o ato de escolher deveria estar condicionado a uma norma geral orientadora, o que nos levaria a um paradoxo, que o existencialismo justifica com o postulado da importância do grau de liberdade, com que se faz a escolha. Assim, admite a teoria deontológica do ato.

As teorias deontológicas da norma, onde se insere a “ética” profissional – que é normativa -, determinam que os atos morais são orientados por normas que devem ser cumpridas independentemente das suas conseqüências. Sem contar os filósofos contemporâneos que se dedicaram ao estudo dessas teorias, é na Crítica da razão prática, de Kant, que encontramos a expressão clássica dessa filosofia.

As teorias teleológicas dividem-se em: utilitarismo e egoísmo ético; ambas têm em comum o princípio de relacionar a obrigação moral a que estamos sujeitos às conseqüências de nossas ação. Se ao praticar um ato o fazemos levando em consideração o nosso benefício pessoal, estamos diante da teoria do egoísmo ético; ao contrário, se consideramos o benefício dos outros, nos deparamos com o utilitarismo, em sua forma vária.

Tomo o exemplo da aplicação do Art. 120, do Código de Ética Médica, que eu mesmo levantei no passado, quando éramos, os médicos do trabalho, constrangidos a realizar perícias para conceder ou negar benefícios previdenciários aos empregados da companhia onde trabalhávamos. Não há dúvida que se trata de uma norma deontológica, portanto, o seu cumprimento independe das conseqüências do ato a que ela se ajusta. Mas, o que esta norma realmente proíbe ao médico? “Ser perito de paciente seu, de pessoas de sua família ou de qualquer pessoa com a qual tenha relações capazes de influir em seu trabalho”. Como é sabido, a despeito da clareza desta redação, foi preciso uma resolução do Conselho Federal, para confirmá-la, o que causou grande alvoroço no meio dos médicos do trabalho que reputam a medicina do trabalho uma especialidade sem pacientes. Ainda que a medicina do trabalho fosse essa estranha especialidade sem pacientes, mesmo assim a proibição os alcançaria, a esses médicos do trabalho, pois não há negar que o empregado da empresa onde trabalham, se não é paciente, certamente está entre: “qualquer pessoa com a qual tenham relações capazes de influir…” Negar isto implica renegar o próprio conceito de generalização.

Como se pode deduzir, estamos diante de um problema prático-moral e não de uma questão teórico-ética; portanto, será inútil recorrer à Ética para resolvê-lo. A Ética não cria a Moral, estuda-a com os seus postulados teóricos, somente isto. Por outro lado, não se pode ignorar que a Moral mantém com a sociedade uma certa “promiscuidade” evolutiva, que a torna mutável, o que não foi considerado quando se discutiu a aplicação do Art. 120.

A celeuma que então se criou em torno dessa questão se deveu exclusivamente ao fato de se dar a uma norma deontológica interpretação teleológica, na tentativa de ajustá-la a uma situação concreta, não se cogitando de buscar, na evolução da moral, a correta solução ao problema. Ora, a moral sempre reflete a sociedade que lhe é contemporânea, não se cristalizando, imutável, no tempo.

Se é certo que a moral evoluí, também é correto que a ética a ela se deva ajustar. O exercício da medicina na atualidade não pode ser orientado por normas deontológicas que refletem uma moral que já não existe, atropelada pela evolução das relações sociais e pelo desenvolvimento das ciências que a apoiam.

Ética da meta

Trago para o princípio desta reflexão as palavras com as quais Françoise Dastur finalizou o seu interessante ensaio sobre a finitude: ‘‘É essa irresponsabilidade e essa amoralidade do jogo cósmico do qual não há expiação nem desejável nem possível, e essa realeza da finitude que são totalmente ignoradas ali onde, como nas sociedades industrializadas, isto é, hoje em dia numa parte cada vez maior do planeta terra, a morte caiu no esquecimento”. A morte, senhores, é, na visão de Schoprnhauer, propiamente o gênio inspirador, ou a musa da filosofia, portanto, meditemos sobre ela com este exemplo: um empregado vivendo circustâncias aflitivas cometera falta grave, ao transferir, para a sua conta bancária, parte dos salários de outros empregados, tendo, para isto, conseguido, por meio escuso, a senha de sistema de pagamento… Estava sendo submetido a uma comissão de inquérito administrativo, e, dizia-se, seria certamente demitido. Isto é: a desgraça atarindo, para si, uma desgraça ainda maior. Quando fora ouvido numa sexta-feira, era um mau empregado, que devia pagar pelo seu erro. Na segunda-feira seguinte, com a comoção do seu suicídio, já era um coitado, covarde, que não agüentou a pressão das circunstâncias que o envolviam. Providências, assistente social para apoiar a família e providenciar o funeral, e uma nota lacônica convidando para assistir ao enterro… Não resisti à provocação e fui, em pensamento, direto a Novalis, o poeta-filósofo que soube bem compreender a relação do idealismo com a morte, e o demonstrou neste arrebatador fragmento: “O ato filosófico autêntico é o suicídio; reside aí o começo real de toda a filosofia; é para isso que tendem todas as necessidades do futuro filósofo; e só esse ato está em conformidade com as condições e as características de uma ação transcendental.” Por que este exemplo? Que me sugere ele além da compreensão de que é bom guardar na cabeça a sída sempre possível que nos oferece?  Nenhuma outra razão senão a de sugestiva oportunidade que se me apresenta para penetar na fenomenologia da morte. Em primeiro lugar, revela-me que a vida é a morte em processo: a existência propriamente humana é então uma morte voluntária continuadamente assumida.

Hengel afirmou, na Fenomenologia do espírito, que morte é a única obra e realização da liberdade universal: “o homem não é simplesmente mortal; é a encarnação da morte; é a sua própria morte. Os médicos, acostumamos com essa idéia enganosa de que é sempre possível prolongar a vida, a ponto de incorrer, com freqüência, na inútil presunção de poder garanti-la com técnicas sofisticadas, e, cada vez mais, nos afastamos da inexorável certeza da morte. Montaigne, com sua peculiar genialidade, resultado de uma educação perfeita, em sua enciclopédia de humanismo literário, Os Ensaios, afirmou ser “a morte o objeto necessário de nosso alvo, se ela nos assusta, como será possível dar um passo à frente sem febre? O remédio do vulgo é não pensar nela…” A medicina,  advertiu André Comte-Sponville, pode ser útil a isto, por que isso nunca foi mais verdadeiro do que hoje: o hospital põe a morte à distância, para os outros, para os saudáveis, a tal ponto que eles acabam, por vezes, esquecendo-a. “Morrer? Nem pense nisso! Parei de fumar e tenho um médico ótimo…” “Meu colesterol não chega a 200, meu teste de esforço foi negativo…” “Pobres crianças que somos!” “Outros, contra a angustia, se entopem de ansiolíticos, outros se atordoam no trabalho ou no prazer…” “Fingem não morrer, e é a isto que chamam sua saúde.”  E o mais trágico de tudo é que essas presunçosas figuras que “prescrevem  substâncias que pouco conhecem para curar doença que conhecem menos ainda,  a pessoas das quais nada sabem”, os médicos, afirmam e garantem isso…

Tendo perdido a bússola da metafísica, porque abdicarm-se, há muito, do estudo das humanidades, os médicos, a despeito dos seus prodígios científicos, se perderam pelos descaminhos da biologia, e já não podem compreender que toda vida, independentemente da sua duração, seja um dia, sejam oitenta anos, é completa, se se atinge a sua meta, que é a morte!

A medicina não é uma ciência, é uma técnica. Não há negar que é uma técnica que se apóia em numerosas ciências, daí o seu caráter científico, que não é tão remoto, como se presume. Somente no século XIX, em França, com Magendie e Claude Bernard, é que a medicina opera sua revolução epistemológica, até chegar ao surpreendente desenvolvimento dos dias atuais. Até meados do século XIX o remédio que mais se vendia nas farmácias de Paris era sanguessuga!

“De todos os progressos científicos e técnicos que nosso século conheceu, e eles são consideráveis, nenhum nos toca mais de perto que os da medicina: eis nossa própria vida, em sua intimidade biológica e psicológica, tornada objeto de ciência!” Esses mesmos progressos, que, por um lado, produziram maravilhas notáveis, como é o caso das vacinas, hipertrofiaram tanto, por outro, a soberba científica do médico, que às vezes parece confundir-se com o próprio Criador, a ponto de apequenar, na mesma proporção, o humanismo sem o qual a medicina não passa de uma sofisticada técnica a serviço do mercantilismo que a cerca.

Com a lucidez que o distinguia, Mário Rigatto foi direto ao âmago da questão: “No último século, a medicina registrou a quase totalidade de suas vitórias científicas ao longo dos tempos. Suas conquistas abrangeram três campos básicos: 1º.) o mais importante, o menos dramático e o menos comentado: a preservação do organismo sadio (vacinas, antibióticos);  2º.) o menos importante, o mais dramático e o mais comentado: substituição de partes do organismo doente (próteses, transplantes); 3º.) o mais festejado: o “calote” (drogas para emagrecer, “hormônios”, a “pílula”, “fortificantes”). “Do ponto de vista científico, os três campos são igualmente respeitáveis. Do ponto de vista socioeconômico, o primeiro é tão mais importante que reduz os dois últimos a muito pouco. Não obstante a disparidade de valores, o maior esforço do homem se concentra nos dois últimos campos”.

Eis aí a sentença: o médico, fascinado pelos anúncios luminosos de questionáveis progressos, que são a ciência a enganar, não só combate a doença, mas a agrava ou a produz. Em memorável discurso de ocasião, aos formandos de medicina, em 1968, o grande professor aconselhou: “lembrem-se que mais importante do que “ser normal” é “sentir-se normal”. Não criem “doentes” atribuindo a esta ou àquela “doença” sintomas vagos, inespecíficos e, o mais das vezes, transitórios. Não criem “inválidos” a partir de anormalidades bioquímicas cujo real significado desconhecemos”. Esse conselho, entretanto, pelo que me é dado observar, não tem sido seguido. O sedare dolorem divinum opus est e o primum nom noscere são, hoje em dia, fósseis retóricos conhecidos apenas dos que se dão à pena de praticar a arqueologia médica, tamanha a dissociação entre o tecnicismo, que só considera a condição “paciente” do indivíduo, e a atenta e inteligente observação clínica, que considera o indivíduo e suas circunstâncias. “Yo soy yo y mis circunstancias”, e, das minhas circunstâncias, a mais certa, a mais inexorável é a minha morte. Opinam e interferm na minha vida sem nada dela conheceram, porque “a realidade da vida consiste, pois, não no que é para quem de fora a vê, mas no que é para quem desde dentro dela é, para o que a vai vivendo enquanto e na medida em que a vive.” “Daí que conhecer outra vida que não é a nossa obriga a intentar vê-la não apartir de nós mas a partir dela mesma, a partir do sujeito que a vive.” Heidegger, existencialista notório, penetrou o cerne da ontologia do existir, e nos adverte que habitualmente imerso na inautenticidade, que lhe oculta a realidade da própria condição, o homem, no entanto é capaz de verdade, quer dizer, de desvelar ou revelar a si mesmo a temporalidade essessial de sua existênncia, de ser-para-a-morte. Sempre incompleto, ou inacabado, procurando realizar projetos que jamais se cumprirão integralmente, o ser-aí não é afetado pela morte como por um acontecimento exterior, mas é, essensial e constitutivamente, um ser-para-a-morte. A angústia e a mortalidade do ser-aí, permite, assim, o acesso à existência autêntica. A presunção científica do médico, que se exorbita nessa figura questionável que é o “especialista”, o leva ao erro fatal de não considerar a vida a partir do sujeito qua a vive, mas como ele a entende a partir dos seus pressupostos biológicos e técnicos. Se a vida não é levada em conta de uma necessidade num sentido subjetivo, simplesmente porque o homem decide autocraticamente viver, não se há de supor que se dê à morte a importância metafísica de estar contida na própria vida. Freud, nos Ensaios de Psicanálise, escreveu: “Lembremo-nos do velho adágio: si vis pacem, para bellum. Se queres manter a paz, arma-te para a guerra. Já é hora de modificá-lo: si vis vitam, para mortem. Se queres ser capaz de suportar a vida, esteja pronto para aceitar a morte.” Suportar a vida, foi o que disse o inventor da psicanálise! Mas, podemos dizer, sem corromper o sentido original, se pretendemos gozar a vida; amar a vida; vivê-la intesamente, que estejamos prontos para a sua meta, que é a morte.

Enquanto não nos damos conta disto, vamos, com a nossa presunçosa e vã “ciência”, dosnado o colestrol, caluniando o óleo de dendê, difamando o açucar, esconjurando o tabaco, baixando a taxa de mortalidade… e nos iludindo que se morre cada vez menos. Quem morre é o indivíduo, e todos os indivíduos morrem. Podemos até morrer mais tarde, mas que morremos menos, não. A taxa de mortalidade, para quelquer indivíduo, não foge à constância de ser igual a um. É com esta inexorável  e costante taxa que me defroto todos os meus insignificantes dias, e do seu nunerador jamais me esquivarei. Se preferem a ilusão das taxas dos demógrafos, que projetam um prolongamento indefinido da vida, que oçam, para finalizar, o demônio:

Não és mais, meu senhor, do que és: um mortal!

Perucas podes ter, com louros aos milhões,

Alçar-se com teus pés nos mais altos tacões,

Serás sempre o que és: um pobre ser mortal!

(Mefistófeles – Fausto, Goethe)

Fernando Guedes

7/5/2005

Proferido no II Encontro de Profissionais de Saúde da Petrobrás

dez 10, 2002 - Poligrafia    No Comments

Por que será?

Que o que tinha esse corpo de inefável

Cristalizou-se na tuberculose.

Cruz e Souza

Vomitar o pulmão na noite horrível

Em que se deita o sangue pela boca!

Augusto dos Anjos

A febre me queima a fronte

E dos túmulos a aragem

Roçou-me a pálida face.

Casimiro de Abreu

A dor no peito emudecera ao menos

Se eu morresse amanhã.

Álvares de Azevedo

Eu sinto que vou morrer… dentro em meu peito

Um mal terrível me devora a vida.

Castro Alves

Os médicos e as mulheres são, afirmou Afrânio Peixoto, as criaturas mais sujeitas à moda, esse tirânico fenômeno sociológico, que, quando não deturpa, exagera a percepção dos fatos. Tem sido assim em relação a certas problemas de saúde pública, que são divulgados como se possuíssem uma dimensão além do seu real tamanho. Não tenho a intenção de menosprezar a importância de certas doenças, nem sequer de negar o valor das medidas de prevenção e controle de todas elas, exagerado, ou não.

Interessa-me a tuberculose, que parece já não merecer, das autoridades sanitárias e dos médicos, atenção proporcional à sua extensão, enquanto problema de saúde pública. Como o comportamento humano prima-se pela comparação, assim é na vida: compara-se, para optar, de onde eu suponho o equívoco dessa supervalorização atribuída à SIDA (AIDS dos susceptíveis à colonização lingüística), que, não obstante tratar-se de uma doença que reclama atenção responsável, porque iniciou, entre nós, com uma letalidade de 100%, tem sido, até hoje, motivo de uma atenção desproporcional à sua distribuição na população, se compara à tuberculose, por exemplo. A sua conseqüência, já que conseqüência, para mim, é morrer antes de morrer, não pode ser argüida, para justificar o que não devia ocorrer.  Penso que, em relação a esta doença, estão todos abusando da faculdade de opção.

Os números oficiais do Ministério da Saúde não dizem outra coisa: no período que vai de 1980, quando aqui surgiu o primeiro caso de SIDA, a 2000, portanto intervalo de tempo em que ambas co-existem, cantam-se 1.747.531 novos casos de tuberculose e 215.701 de SIDA. Nesse período, as médias de óbitos, de uma e de outra, se aproximam, em torno de 5.697, para a tuberculose, e 5.032, para a SIDA.

Dirão, os que acham que a SIDA merece mais propaganda que a tuberculose, que, para causar 105.679 mortes, ela produziu apenas 215.701 casos novos, enquanto a tuberculose, para matar 119.643 pessoas, adoeceu 1.747.531 indivíduos. E justificam, por dedução, de peito cheio: a SIDA é mais letal! Que o seja, mas isto nada justifica, se ambas, ao cabo, causam o mesmo número de mortes. Em verdade, o que as difere, se oculta, por conveniência, ou hipocrisia: o estrato da sociedade que cada uma delas atinge. A tuberculose, que já não mata notáveis, como no passado, perdeu sua notoriedade, agora grassa, impunemente, nas camadas mais miseráveis da sociedade, enquanto a SIDA apavora os “vips”, que influenciam, que controlam, que agenciam, que impõem sua vontade à sociedade de consumo, que eles mesmos engendraram. A época de “celebridade” da tuberculose já se foi, agora, ela só mata arraia-miúda, que, nesta desgraçada nacionalidade, não tem quem lhe chore a desdita. Para mim, vida é vida, miserável ou “vip”, portanto não posso compreender essa desigualdade de atenção. Se me fosse possível conceber que a importância, com que se leva em conta as medidas de prevenção, ou controle, de uma determinada doença, pudessem ser proporcional à importância do estrato social atingido, a SIDA jamais ombrearia a tuberculose. Antonie Watteau, Carl Maria Von Webwe, Simon Bolívar, Frederic Chopin, Henry David Thoreau, Anton Tchekhov, Amadeu Modigliani, Gauguin, Moliére, Shiller, Mozart, Calvin, Spinoza, Laennec, Franz Kafka, Noel Rosa, Zequinha de Abreu, Gaspar Viana, Manoel Bandeira, Álveres de Azevedo, Cruz e Souza, Augusto dos Anjos, Casimiro de Abreu… paro, porque a lista seria interminável. Ah! Querem mais? Pois bem, eis tudo: a tuberculose matou o Brasil inteiro, matando a Bahia, ao matar Castro Aves! Mas, apesar de achar que a infecção que vitimou o Poeta dos Escravos vale uma pandemia, os meus escrúpulos de médico fazem-me raciocinar de outra forma.

A SIDA é importante problema de saúde pública, sim; mas a tuberculose não é menos do que ela, e, se não o é, merece que se lhe dê a mesma atenção, pelo menos. Estima-se que, no Brasil, do total de sua população, 35.000.000 a 45.000.000 de pessoas estão infectadas pelo M. tuberculosis, com uma média de 100.000 casos novos por ano, mas não se vê nenhuma campanha, nenhuma propaganda alertando sobre essa catástrofe, que grassa no silêncio de sua miséria; nenhuma ONG com isto se importa; nenhuma empresa cogita-se disto, nas suas campanhas internas de prevenção de doenças. Por que será?

Fernando Guedes

10/12/2002

out 18, 2000 - Poligrafia    No Comments

Cidadania: a que se aplica?

As palavras, como as mulheres, são sujeitas à moda. A moda, tirânico fenômeno sociológico, às vezes levam as pessoas ao ridículo, quando não se observam certos limites, que, se ultrapassados, distanciam as criaturas da autocrítica, deixando-as livres para o mau uso das coisas. Cidadania é palavra da moda, que atualmente entrou para o liliputiano vocabulário dos políticos, que a empregam para tudo, de forma desastrada, e, não raras vezes, em contextos que as acepções do termo não permitem. Uma palavra mal usada é infinitamente mais danosa que um vestido mal posto.

O termo (que corresponde ao espanhol ciudadanía, ao italiano cittadinanza, ao francês citoyenneté, ao inglês citzenship) provém do substantivo cidadão, cujo sentido moderno, da acepção a que me refiro, nasceu de discurso de Pierre-Augustin Caron de Beaumarchaism em 1774.

Este sentido, que se distancia do etimológico, adquiriu uma noção jurídica, ao denotar a condição de um indivíduo como membro de um Estado, e portador de direitos e obrigações. Influenciou a semântica moderna do termo a transformação histórica que implicou a formação dos Estados centralizados, impondo jurisdição uniforme sobre um território não limitado aos antigos burgos ou cidades medievais.

Até ao início dos tempos modernos, o reconhecimento de direitos humanos e sua consagração no direito positivo era limitado aos burgos ou cidades. A rigor, a individualização desses direitos não existia até ao surgimento da teoria dos direitos naturais do indivíduo e do contrato social.

Dessa forma, a evolução sociológica e política que transformaram a sociedade implicou que cidadão tomasse sinônimo de homem livre, portador de direitos e obrigações a título individual, assegurados em lei.

Conseguintemente, cidadania nada mais é que a qualidade de cidadão, e possui um aspecto sociológico e um aspecto político. Neste último sentido, expressa a tão decantada igualdade em face da lei, que deriva da égalité, que a Revolução Francesa espalhou pelo mundo em fora. Assim, o sentido restrito do termo, que não extrapolava os lindes dos antigos burgos, adquiriu amplitude nacional, com a formação e unificação dos estados modernos, capazes de exercer efetivo controle sobre seus respectivos territórios e de garantir aos seus habitantes, de maneira uniforme, os mesmos direitos.

A idéia de que o homem, pela sua própria natureza humana, pudesse dispor de certos direitos a ela inerentes, e oponíveis ao poder do estado, é anterior à Revolução Francesa, e tem sua concretização com a Declaração de Direitos americana (Bill of Rights, 1689), onde adquiriu, pela primeira vez, forma positiva. No campo do direito positivo, os direitos humanos foram incorporados ao direito constitucional moderno pela Revolução Francesa. A principio, a teoria do direito constitucional dividiu os direitos humanos em naturais e civis. Os naturais correspondiam à idéia da existência pré-social de um estado natural do homem, e se incumbia de garantir aquelas faculdades primordiais da criatura humana, com que a natureza a caracterizava: liberdade pessoal, de religião, de pensamento etc. Os direitos humanos civis corresponderiam à evolução do homem, do estado natural para o estado social, caracterizado pelos processos de civilização, que admitiam que a liberdade natural, mais ampla, pudesse evoluir para a liberdade civil, mais limitada, posto que os seus limites coincidiam com os da liberdade dos outros homens,  tornando clássica a máxima: o direito de um começa onde termina o do outro.

A Constituição é a fonte primordial dos direitos individuais, portanto da cidadania. Que diz a nossa? No título dos princípios fundamentais, o Art, 1o dispõe, no inciso II, que a Republica Federativa do Brasil fundamenta-se na cidadania, no inciso III assinala o fundamento na dignidade da pessoa humana. No Art. 3o estão consignados os objetivos fundamentais do Estado brasileiro: construir uma sociedade livre, justa e solidária; garantir o desenvolvimento nacional; erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

Não quero me delongar na citação de artigos referentes aos direitos individuais, para não tornar o assunto enfadonho, mas fixar a análise no Art. 13, que estabelece a língua portuguesa como o idioma oficial da República Federativa do Brasil, o que me leva à dedução que a nenhum brasileiro é permitido desconhecê-lo, constituindo-se isto na primeiríssima obrigação da cidadania, posto que a condição de cidadão implica também em deveres.

Cidadania são direitos e deveres tutelados pelo Estado, inerentes ao indivíduo, decorrente da sua natureza humana. O homem e a mulher são cidadãos, as coisas não o são, porque lhes falta a natureza humana.

A não observação do dever decorrente do Art. 13, da Constituição, é que leva a essa coisa absurda de se confundir filantropia com cidadania. Ora, se os direitos da cidadania são tutelados pelo Estado, como está disposto na Constituição, e se o Estado não os garante na prática, só se pode falar em estímulo ao exercício da cidadania se os agentes que se dizem envolvidos nisto agissem de forma a obrigar o Estado cumprir a Constituição, patrocinando, por exemplo, ações judiciais contra a irresponsabilidade estatal. Se é dever do Estado erradicar a pobreza, da qual decorre a fome, não será através de comité du pain que se exerce a cidadania, isto, no máximo, é exercício de filantropia. Filantropia é amor à humanidade, pode e deve ser praticada, mas difere substancialmente de cidadania, que implica a noção de direito irrenunciável.

Como os agentes econômicos não têm nenhum interesse em lutar contra o Estado em prol da erradicação da pobreza, criaram esse mito de “empresa cidadã”, que nada mais é do que filantropia subsidiada com renuncia fiscal. Tudo faz parte da estratégia de propagada dos grupos hegemônicos transnacionais, engendrados pela globalização, que passam a assumir funções dos Estados nacionais incapazes, criando a fábula de que as empresas e os cidadãos bem sucedidos economicamente têm o dever de fazerem  o que não faz o Estado.

Fernando Guedes

18/10/2000

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