Archive from maio, 2010
maio 29, 2010 - Poligrafia    2 Comments

Políticos versus Ficha Limpa: 1 x 0

Campos_SalesManoel Ferraz de Campos Salles, ministro da justiça do governo provisório, malgrado sua perseverança, não conseguiu o Código Civil… Assumindo a presidência da república, em 15 de novembro de 1898, ressurgiu a oportunidade de obtê-lo, no seu quatriênio… À frente do ministério da justiça, o paraibano Epitácio Pessoa foi incumbido de remover todos os obstáculos que pudessem atrapalhar a tramitação do projeto, encomendado-o a Clóvis Beviláqua, em cuja capacidade confiava o ministro, para alcançar o resultado com rapidez e perfeição…

Rui, senador, com isso não concordava… Publicou dois artigos n’A Imprensa, 14 e 15 de março de 1899, antes mesmo do inicio do trabalho de Clovis Beviláqua, expondo, com eloqüência, suas razões, sobretudo contra a pressa que o governo queria se imprimisse ao trabalho.

Em seis meses estava pronto o Projeto Primitivo, que o ministro submeteu a uma comissão revisora (Comissão dos Cinco), e o entregou, revisto, ao Presidente Campos Salles, que imediatamente o encaminhou ao Congresso…

Somente no final de 1901, através de Comissão Especial (Comissão dos Vinte e Um),  presidida por José Joaquim de Seabra (que dá nome à Baixa dos Sapateiros), a Câmara começou estudar o projeto, fatiando-o em dezoito partes, entre os seus membros.

Entre dúvidas, confusões e divergências doutrinárias acaloravam-se os ânimos, colocando em risco a empreitada… O próprio Clóvis Beviláqua se ressentia das modificações que a Comissão imprimiu ao seu Projeto.

Clovis BeviláquaPronta a obra, aproximando-se o fim do quatriênio, depois de tantas sofridas discussões, houve quem lhe criticasse o estilo da redação. Sobreveio, então, o pasmo: passaria ela pelo crivo de Rui, no Senado? Claro que não! Que fazer então?!  Só havia uma solução, que estava na Bahia… Para aqui veio J. J. Seabra, com um exemplar do projeto, para submetê-lo à correção do Professor Ernesto Carneiro Ribeiro, ilustre gramático, que fora professor de Rui. Depois de Carneiro, não ousará Rui… pensou mal Seabra.

O grande professor teve apenas quatro dias e algumas hora para revisar 1.832 artigos e anotar correções! Nessa condição, era razoável que cochilasse; afinal, disse Horácio, às vezes até o bom Homero cochila.

Quando o projeto chegou ao Senado, em 31 de março de 1902, lá estava Rui à frente da Comissão Especial à sua espera. Não deu outra, como se diz vulgarmente… No Parecer Sobre a Redação do Projeto do Código Civil o discípulo não poupou o mestre.

Crneiro RibeiroCarneiro respondeu com as Ligeiras observações sobre as emendas do Dr. Rui Barbosa feitas à redação do Projeto do Código Civil, isto é: cutucou onça com vara curta… Rui, depois de estudar e sistematizar as idéias, replicou em alto estilo, com a Réplica…  Sobre essa pendenga gramatical, Afrânio Peixoto escreveu, no Breviário da Bahia: “Resultado: penalty ou réplica. Elas por elas, 0 x 0, apesar da réplica de Carneiro à Réplica: A redação do Projeto do Código Civil e a Réplica do Dr. Rui Barbosa”.

O Brasil, com esse episódio, aprendeu estilo, porque, como disse o próprio Clovis Beviláqua, “O que é esse trabalho sabem-no todos, pois não só os juristas se interessaram por ele, senão também os leitores, e, ainda, os que apenas sabiam ler.” Mas, com o Projeto Ficha Limpa que aprenderá o Brasil?  Evidentemente, não há comparação. Um Código Civil é outra coisa… Tudo quanto, de mais caro, diz respeito ao cidadão, nas suas relações civis, nele está disciplinado. Por isto deve ser pensado com prumo, discutido com tempo, redigido no mais claro e correto vernáculo. Vida, propriedade, honra, tudo quanto é mais precioso, dependerá sempre da seleção das palavras. Os vocábulos da lei hão de pensar-se como diamantes, disse Rui, na Réplica.

rui_barbosaO Projeto Ficha Limpa, que visa a impedir a candidatura de pessoas condenadas “em primeira instância ou única instância ou tiverem contra si denuncias recebida por órgão judicial colegiado”, para ser aplicável às eleições de outubro próximo, foi submetido ao mesmo interesse da pressa dos seus patrocinadores. Até chantagem e barganha houve: “Só votaremos o Pré-sal se nos permitirem votar o Ficha Limpa”. “O Ficha Limpa é do interesse da sociedade, não é do interesse do governo”… De tudo houve, para o projeto ir à votação. E o foi, mas não sem antes sofrer, de última hora, uma emenda que lhe alterou o conteúdo, com a desculpa de uniformizar os tempos verbais, disse o autor. Simularam uma simples emenda de redação e não devolveram o projeto à Câmara.

Em vez de “os que tenham sido condenados”, a filologia do Senado preferiu “os que forem condenados”. Como não podiam rejeitar o projeto, em momento eleitoral, cuidaram de plantar a dúvida, para ser resolvida pelos gramáticos do Supremo Tribunal Federal. Como um processo dessa natureza tarda tanto, o mandato se expirará antes do transito em julgado…

Entram em campos os “especialistas”: uns dizem que os políticos já condenados foram excluídos do alcance da lei, outros dizem que esses políticos são alcançados pela lei. “Condenados” seria adjetivo, incluindo todos os que estão na condição de condenado, opinam uns. “Forem” é verbo de ligação, que não indica ação futura, senão um estado ou qualidade do sujeito, dizem outros.

Ivanildo Bechara, filólogo, da Academia Brasileira de Letras, é de parecer que “tenham sido” é mais claro, por indicar aqueles que já foram condenados no passado, ao passo que  a expressão “os que forem condenados” suscita duas interpretações: aqueles que vierem a ser condenados (futuro) e aqueles na condição de condenados (presente).

Outro professor opina que “tenham sido” é pretérito perfeito do subjuntivo e “forem” é futuro do subjuntivo. “Forem condenados” é o mesmo que “vierem a ser condenados”, os que serão condenados no futuro, afirma ele.

Eis a questão: como interpretarão, já que há margem para isto, os tribunais, porque é certo que os políticos recorrerão? Quem tiver a paciência de assistir, pela TV, a uma seção do Tribunal Superior Eleitoral ou do Supremo Tribunal Federal, imaginará o que será decidido…

Penso que se os políticos quisessem clareza não redigiriam no modo da dúvida, o subjuntivo, buscariam-na no indicativo, que enuncia o fato de modo real, positivo. Nos elogios ao Dicionário de Verbos e Regimes, de Francisco Fernandes, que já não se lê, escolho este: “O verbo é a palavra, a palavra por excelência, e seu regime é a sua vida.”

Bem, sei que não se pode comparar, não obstante a minha ignorância futebolística, um “clássico” com uma “pelada”, porém ambos têm resultado, que é o interesse de quem torce… O do “clássico” Carneiro versus Rui (Câmara x Senado) já o revelei. O da “pelada” Políticos versus Ficha Limpa (Congresso x Sociedade) revelarei agora: 1 x 0 para o “Time de Brasília”, placar conseguido no último minuto do segundo tempo, com a catimba senatorial.

Fernando Guedes

25/5/2010

maio 3, 2010 - Poligrafia    No Comments

Farinha do mesmo saco…

Depois que o Supremo Tribunal Federal, em demorada seção, rejeitou a ação impetrada pela OAB, reivindicatória de nova interpretação da Lei 6.683, de 28 de agosto de 1979, conhecida como lei da anistia, com a intenção de punir crimes comuns cometidos por agentes do Estado, leio, nos jornais de hoje, manchetes enganadoras, como esta do JB: “Torturadores continuam impunes, decide STF.” No próprio sítio eletrônico da OAB, esta: “Supremo Tribunal Federal não faz justiça ao anistiar torturadores.”

Depois do longo voto do ministro relator, Dr. Eros Grau, elogiado por toda a corte como um voto antológico, por abranger todos os aspectos suscitados pela causa: jurídico, sociológico, histórico, filosófico etc., seguiram-se outros, seis, contra a pretensão da OAB. Vencidos dois, um do ministro-poeta, que abusou, sem êxito, das figuras de linguagem, como se tivesse versejando o poema da antijuricidade… Como jurista, foi poeta de mais, por isto fingiu, como fingidor é o poeta (Finge tão completamente que chega a fingir que é dor, a dor que deveras sente. – Fernando Pessoa).

Sete a dois: o enterro de uma pretensão descabida… A aludida lei foi o resultado de um pacto, negociado por quem então tinha legitimidade para celebrá-lo (CÉSAR PELUSO), inclusive a OAB, sob a presidência de Seabra Fagundes, que sabia que o projeto da anistia só prosperaria se fosse bilateral e extinguisse  os crimes de qualquer natureza, relacionados com crimes políticos ou praticados por motivação política.

A bilateralidade e abrangência a crimes de qualquer natureza foi o espírito da lei da anistia, reconhecido por figuras insuspeitas como Paulo Brossard, Raimundo Faoro, Teotônio Vilela, Rafael de Almeida Magalhães etc. O Conselho Federal da OAB de então emitiu uma manifestação unânime sobre o projeto de lei, reconhecendo-o, a esse espírito, e a amplitude heterodoxa da definição dos crimes abrangidos.

O parecer foi elaborado por Dr. Sepúlveda Pertence, que o reiterou, trinta e um anos depois, numa entrevista, repetida com exaustão na seção do STF. Disse: “Se não pude evitá-lo, é porque a minha convicção jurídica continua a mesma do parecer apresentado à Ordem, em 1979: não obstante toda a nossa repulsa à tortura estatal, os torturadores foram, sim, anistiados pela lei de 1979.”

Mas, torno ao contexto do título… A opinião pública é, em última análise, a vítima desse sistema desonesto de informação, instituído nesta nossa sociedade contemporânea. Vejam: “Torturadores continuam impunes, decide STF”, afirmou um dos grandes jornais brasileiros. Não foi isto que o STF decidiu. Decidiu que a lei da assistida foi regularmente decretada, que cumpriu o efeito para o qual foi decretada, e anistiou bilateralmente crimes de qualquer natureza. Não continuam, pois, impunes os torturadores, porque, no período de dois de setembro de 1961 a 15 de agosto de 1979, não há crimes a serem punidos, porque a lei os extinguiu. Se os crimes foram extintos, a punibilidade deles também, por conseqüência, o foi. Diga-se isto à sociedade.

Supremo Tribunal Federal não faz justiça ao anistiar torturadores”, afirmou o site da OAB. Se esta afirmação fosse de um panfleto qualquer a ignorância que encerra seria relevada… Não pode ser, sendo de quem é. Quem anistiou os criminosos foi o Congresso Nacional, ao decretar a lei da anistia. Será que a OAB não sabe disto? Sabe, muito bem! Se não é ignorância, que não pode ser, o que é, então? Enganadores, esses que não se convencem do próprio equívoco, e tentam enganar a esses que não aceitam a realidade dos fatos. Enganadores e enganados: farinha do mesmo saco…

Que me não venham dizer que eu esteja, com este artigo, defendendo tortura e torturador. Não, não… mil vezes não! Se eles, os torturadores, de ambos os lados, foram beneficiados com a anistia, que lhes suprimiu os crimes, não o serão nunca apagados da memória dos que sobreviveram às suas atrocidades, nem da dos que, embora as não sofrendo, tiveram delas consciência.  Que se abram, logo, esses arquivos, para que a sociedade possa se defrontar com verdade e conhecer-lhe a dimensão, seja ela qual for.

Fernando Guedes

30/04/2010


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