maio 21, 2013 - Medicina do Trabalho    1 Comment

Trabalho: Risco Profissional

 
Deus ao mar o perigo e o abismo deu; Mas nele é que espelhou o céu. (Fernando Pessoa)
 
Os TLVs e os BEIs não são linhas divisórias entre exposições seguras e perigosas, nem são um índice relativo de toxicologia. Não são estimativas quantitativas do risco em diferentes níveis de exposição ou por diferentes vias de exposição. (ACGIH)
 
O que transforma dor emocional em toxicidade, especialmente em ambientes organizados, é a resposta dada à dor de maneira nociva e não curativa. (Peter J. Frost)

 

Para a Infortunística, “parte da Medicina Legal que estuda os infortúnio ou riscos industriais, sejam agudos, físicos e químicos, propriamente acidentes do trabalho, sejam subagudos ou crônicos, tóxicos e biológicos, as doenças profissionais”, é o perigo inerente ao trabalho, base doutrinária do direito acidentário desde 1919, entre nós. Não é sem razão: um velho provérbio afirma que, onde há o homem, há o perigo.

O primeiro doutrinador foi Émile Cheysson, num celebre artigo do Journal des Economistes, em 15 de maio de 1888, cujo compêndio é este:

O risco profissional é o risco aferente a uma determinada profissão, independente da falta do patrão e dos operários. Malgrado das precauções tomadas, produzir-se-ão sempre acidentes, sem que a maior parte deles resulte de falta alguma. É por uma ficção humanitária que os tribunais se esforçam por achar uma falta, por criá-la mesmo onde não existe, para indenizar as vitimas. Uma vez que a industria comporta riscos inevitáveis, o operário não deve nem pode suportá-los, hoje mesmo que nunca, em presença do maquinismo moderno e das forças que o acionam”.

Assim, madrugou, com a doutrina, o conceito médico-legal de acidente do trabalho e de doença profissional, pois que firmado o postulado: o trabalho tem riscos próprios, conexos à sua natureza e ao seu exercício. Para a medicina do trabalho, risco deve ser a capacidade que tem o trabalho de causar lesão corporal ou perturbação funcional ou, no extremo da ação lesiva, a morte de quem o exerce. Somente isso, e para isto não é preciso medir nada. Ramazzini, o precursor da medicina do trabalho, na aurora do século XVIII, em 1701, sem jamais ter ouvido falar em higiene ocupacional, foi capaz de compreender isto. O médico do trabalho, para saber o risco que alguém corre de contrair tuberculose, precisa saber apenas que o bacilo de Koch esteja presente na cadeia de transmissão. Se o catarro proveniente da pneumonia cavitária do caso expele 1 milhão ou 100 milhões de bacilos/ml, é-lhe indiferente. Ali, naquele ambiente, há presente, não há negar, uma força de associação entre a exposição e o risco de uma consequência. Que consequência? Doença ou não doença!

A Epidemiologia, ciência básica da medicina preventiva, nesse passo, através de seu capítulo analítico, dirá que há duas medidas para estimar essa força de associação entre a exposição e o risco de adoecer:

1)      Risco relativo, uma razão, entre a incidência da doença nos expostos e a incidência dela nos não expostos.

2)      Risco atribuível, uma diferença, entre incidência da doença nos expostos e a incidência nos não expostos.

Disseram-me, outrora, no curso de especialização em medicina do trabalho, o que tomei por tese: a par clínica, sempre soberana, epidemiologia é o instrumento básico da medicina do trabalho, para estudar distribuição das doenças profissionais e os determinantes de sua prevalência nos trabalhadores…

Mas hoje esse conhecimento vem sendo substituído por uma crença, procedente de uma técnica a quem não incumbe o estudo do organismo humano, de que risco é diverso de perigo, que através de um se pode controlar o outro, ao ponto de não existir nenhuma possibilidade de adoecimento, durante toda a vida laboral, quando a exposição a certos agente químicos estiver abaixo do nível de ação.

Se o acidente do trabalho (trauma agudo) e a doença profissional, incluindo a do trabalho (trauma crônico), não tivessem a consequência jurídica que têm, conquista de renhida luta social, não se importariam, como se importam, com esses traumas, nem empregador nem médico adepto dessa crença…

Transcrevo aqui, ipsis litteris, trecho de um dos nossos clássicos doutrinadores:

O risco profissional é o caso imprevisto, imprevisível, que sucede, e pode não suceder, o incidente, o acidente. Na atividade, e, mais, na atividade aplicada ao trabalho, – em que o homem subjuga e põe a seu serviço a colaboração de energias físicas, químicas, combinadas, utilizando matérias primas deletérias, às vezes contaminadas: em meios restritos, sem conforto, quase sempre nocivos à saúde; sob condições inerentes ao trabalho industrial – os riscos são constantes, o acidente não mais casual, porém previsível, acidente do trabalho ou doença profissional. Com os progressos da ciência, da indústria que lhe aproveita os conhecimentos, vão se obviando tais e quais riscos; também com a educação higiênica, a proteção das máquinas e a proteção do corpo humano contra elas, o saneamento das indústrias, o bem estar que promove a justiça do salário. A equidade do repouso, alimentação devida, a oficina e lar asseados.”

Prossegue o mestre, neste passo:

Mas ainda haverá muito a esperar da ciência e da indústria, do progresso e da rotina, da precaução e da imprudência, para o mínimo dos perigos do trabalho.”

E, sem tergiversar, como sábio que era, arremata:

Muitos, desses riscos, subsistirão, irredutivelmente: basta considerar, alem daqueles que vem da manipulação de matéria prima perigosa, tóxica e até infecciosa que determinam a doença profissional… aqueles outros que resultam da psicologia do trabalhador e do trabalho.”

Estes irredutíveis riscos industriais, e mais os de agora, ainda infelizmente não obviados, constituem o risco profissional a que está sujeito o operário, pelo fato mesmo de sua profissão, condição inerente do seu trabalho. Daí o postulado: o trabalho tem riscos próprios, conexos à sua natureza e ao seu exercício.”

Esta é a doutrina infortunística que ainda hoje respalda o nosso direito acidentário. Assim, para o médico do trabalho, por mais que sejam avançados os processos de prevenção, por mais eficaz que seja a educação do operário, uma quota de risco restará sempre inextinguível, porque a medicina, não obstante o formidável avanço alcançado nas últimas décadas, ainda não pode prever até aonde vai a susceptibilidade individual, numa palavra, em linguagem moderna: as determinantes genéticas.

Não importa quão intrinsecamente tóxico (perigoso) seja o agente ambiental; se não houver exposição, não há risco (Goldstein & Gochfeld). Nos passos dessa lógica, sabidas ou ignoradas as suscetibilidades individuais, chaga-se ao corolário, que ao médico do trabalho não é licito ignorar: exposição, seja ele qual for, implica risco, porque nem todos os hospedeiros respondem igualmente à mesma dose ou estímulo de um agente.  E, para por termo a esta argumentação, a distribuição da suscetibilidade em uma população geralmente é desconhecida (Goldstein & Gochfeld).

Para a infortunística, o empregado está sujeito a três modalidades de risco. Primariamente, como homem, expõe-se ao risco genérico a que se expõem todos os homens, quaisquer que sejam suas atividades ou ocupações. Secundariamente, porque empregado, está sujeito ao risco específico do trabalho que lhe incumbe realizar. Finalmente, em situações particulares, o risco genérico se agrava em virtude de circunstâncias especiais do trabalho ou das condições em que este se realiza, resultando um risco genérico agravado. Verbi gratia, o torrista, na atividade de perfuração de poços de petróleo, está constantemente sujeito ao risco específico de lesar a mão no elevador da torre, porque é inerente à sua atividade travar e destravar essa engrenagem. Mas, durante uma tempestade, estará exposto ao risco genérico agravado de ser fulminado por um raio, sabida a maior frequência de queda de raios em estruturas elevadas. Consideram-se, para os fins da proteção legal, como decorrentes do trabalho os acidentes que resultem dos riscos específico e genérico agravado.

Entre outras informações, ao definir o conteúdo do atestado de saúde ocupacional, que o médico do trabalho deve expedir, ao concluir o exame ocupacional, a NR7 dispõe: “os riscos ocupacionais específicos existentes, ou a ausência deles, na atividade do empregado”.

E remete o esclarecimento para Nota Técnica, que diz isto:

Devem constar do ASO os riscos passíveis de causar doenças, exclusivamente ocupacionais, relacionadas com a atividade do trabalhador e em consonância com os exames complementares de controle médico.” “Entende-se risco(s) ocupacional(ais) específico(s) o(s) agravo(s)  potencial(ais) à saúde a que o empregado está exposto no seu setor/função”.

Com efeito, isso pode confundir o médico que não se dá ao trabalho de submeter textos mal redigidos à hermenêutica, que poderia lhe trazer a correta interpretação do sentido. Passaria, por acaso, pela assessoria jurídica do Ministério do Trabalho, uma Norma Regulamentadora ou Nota Técnica, cuja aplicação viesse conflitar com a Lei Ordinária que dispõe sobre a matéria? Seria extravagante…

Para confundir ainda mais, “médicos higienistas ocupacionais” trazem, para essa discussão, alienada da medicina legal, capítulo relegado ao olvido (lamentavelmente, virou coisa de “legista”, esses que cuidam de defuntos) a diferença que entendem haver entre risco e perigo, apresentada com presunçosa dedução cartesiana.  Pregam que perigo é a qualidade inerente ao agente, que não se pode atenuar (não se pode alterar a qualidade tóxica do benzeno, decorrente de sua natureza química). Risco é o perigo veiculado pela concentração ou intensidade do mesmo agente, no ambiente de trabalho. Assim, para eles, o perigo do agente (que não pode ser atenuado), pode, entretanto, ser tolerado, através do controle do risco (pelo controle do seu veículo: a concentração ou intensidade), por sua técnica, que reputa infalível.

Seguindo essa lógica, o n-hexano presente no ar expirado, em um laboratório de indústria química, em concentração abaixo do nível de ação (metade do LT), não é risco, porque o perigo de lesar o sistema nervoso periférico do empregado, próprio de sua natureza química, pode ser tolerado, porque a concentração (veículo do perigo) acha-se atenuada. Assegura-se, assim, que nenhum empregado daquele GHE (grupo homogêneo de exposição) não contrairá neuropatia periférica, durante toda a vida laboral! Formidável: certo, cartesiano, unifatorial, sempre dose-dependência: baixa concentração: não adoece; alta concentração: adoece. Se avaliações estatísticas, de médias ponderadas, demonstram isso para “grupos homogêneos de exposição”, isto é certo para o indivíduo… Deduzem, com o radicalismo de uma crença.

A lógica médica (medicina do trabalho e medicina legal) é outra… O médico do trabalho, por dominar conhecimentos de outra ordem, por saber quão vária é a interação do agente com o hospedeiro, por não ter dúvida acerca da incerteza dos efeitos em face das causas, se é prudente, não deve atestar que não há risco, quando um agente químico tóxico, presente, estiver abaixo do nível de ação. Porque, entre outras razões médicas, essa linguagem não é médica. Aqui, não há negar, por se tratar de acidente do trabalho (e das doenças que lhe equiparam), a linguagem inescusável é a médico-legal.

Evidente que a higiene industrial é importantíssima, no seu devido lugar… Buscando, com sua técnica, sanear o ambiente de trabalho, através do rigoroso controle das diversas exposições, atenuando as causas (as energias químicos, físicas, biológicas, combinadas, etc.) no período pré-patogênico das doenças… Mas, bem o sei, é dificílimo desconstruir uma crença, que se reveste a si mesma de pretensa lógica científica… Não tendo capacidade (nem pretensão) para tanto, deixo claro a minha certeza que o empregado exposto a um agente químico tóxico, mesmo em concentração abaixo do nível de ação, pode, em face dessa mesma exposição, adoecer. Isto, para mim, não é suposição estatística, não é uma crença fora do credo médico, é o próprio risco profissional. Se ao médico do trabalho fosse possível assegurar que baixas concentrações, como essas que não caracterizam risco, para a higiene industrial, não causam, jamais, qualquer dano à saúde de ninguém, ser-lhe-ia seguro atestar, nessa condição, a ausência de risco. O condicional, entretanto, desconstrói, por mim, essa hipótese…

E a lógica entre os fatos, tornando-se instrumentos de convicção, é tudo em medicina prática. Também, nas outras esferas do saber humano, só é ciência por fora o que for lógica por dentro (Francisco de Castro).

Olho, neste instante, pelo retrovisor da minha existência e diviso longe, muito distante, o ano das minhas aulas de propedêutica médica… Essa lonjura, entretanto, não foi capaz de “deletar”, da minha memória,  o “PDF”  onde leio: em medicina, como no amor, não há nunca, nem sempre! Espero, até à data da aposentadoria, quando encerrarei definitivamente o exercício da medicina, não ser exposto ao risco (ou perigo) de deleção de uma certeza: medicina do trabalho é Medicina…

Fernando Guedes
17/5/2013

1 Comment

  • Parabens, caro Fernando! Como sempre, texto muito bem escrito, com conteúdo e emoção.
    depois me mande suas considerações sobre o congresso da ANAMT.

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