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set 27, 2011 - Poligrafia    5 Comments

Encontro do Grupo dos 4

Coimbra p’ra ser Coimbra
Três coisas há de contar:
Guitarras, tricanas lindas
E um estudante a cantar
Popular

Minha capa vos acoite
Que é para vos agasalhar:
Se por fora é cor da noite,
Por dentro é cor do luar…
António Nobre

O Hilário disse um dia:
Ninguém mais será formado
Quando a velha academia
Deixar de cantar o fado
Gabriel de Oliveira

 

Gidi, Paulo, Magnavia e Fernando

Esses quatro são: José Magnavita Menezes, Paulo Barreto Torres, José Florentino Gidi de Oliveira e eu, aqui revelados, por ordem do avanço nos anos… Somos, entretanto, todos iguais, com a mesma idade mental, na busca do estreitamento da convivência social e da coisa mais importante nesta nossa efêmera existência: a amizade sincera. Foi o trabalho, como médicos da Petrobras, que fez a nossa aproximação, e eu acabei, assim, encontrando no trabalho formal, hierarquizado, movido e mantido por contrato, para servir ao lucro de quem o explora, rara característica prazerosa… Criamos a confraria dos 4, com compromisso informal de nos reunirmos com freqüência, para uma refeição e muita conversa. Se as obras-primas de convivência espiritual gregas realizavam-se nos banquetes e a cena central do cristianismo é a ceia estamos no bom caminho da comunhão…

Derinha, Ogvalda, Rita, Conceição, Hilca, Tânia, Edleusa e Uiara

Desta vez, foi um jantar em minha casa, no sábado, 23, preparado todo ele, a exceção da sobremesa, por Hilca, que se está revelando uma Babete com toques luso-baianos! A sobremesa, por implicar uma confecção mais complicada, preparamo-la na sexta-feira, depois que retornamos da festa de premiação do Concurso Literário 2011, promovido pela regional baiana da Sociedade Brasileira de Médico Escritores, que distinguiu, com o segundo lugar, minha crônica Um dia no Rio. Quando a terminamos passava das 3 horas da manhã. Isto, para mim, é satisfação, como a de quem toca, ao violino, uma sonata de Bach; a de quem debuxa, sobre a tela fina, a pintura que o talento inspira; a de quem esculpe, no mármore informe, a escultura imaginada… Satisfação que só se encontra no trabalho livre, diferente da que se procura, por racionalização ou por fuga, no trabalho formal (ou formalizado), que a não pode produzir!

Além dos 4, estiveram presentes: Glauco e Rita, Anderson e Uiara, Calmito e Tânia, Amilton e Edleusa, Rômulo Carrera e as esposas dos três: Derinha, Professora Ogvalda e Conceição, que primeiro chegou, para minha satisfação, porque tinha algo muito particular para lhe mostrar (sobre a minha escrivaninha, o Santo Antonio que ela pintou, para a proteção desta precária pena) e ficamos a conversar sobre a vida, filosofando, enquanto aguardávamos os outros…

Casquinha de siri; arroz de bacalhau à moda de Hilca, bacalhau à moda de Marcília Castro e strogonoff de camarão; sericaia (tradicional receita de D. Mariquinha Castro); vinhos (Douro, Rioja, Bordoux e Porto) e cervejas, compuseram o cardápio da noite.

Rômulo, Gidi, Amilton, Magnavita, Anderson, Paulo, Glauco, Fernando e Calmito

Rolou muita conversa… Glauco, Calmito e Amilton discutiram a política e suas intermitências: a corrupção, a falta de ética, o enriquecimento ilícito etc. etc. Falamos de literatura, de música, de cultura enfim… Dra. Ogvalda leu o Hino a Coimbra, magistral capítulo de Viagens na Minha Terra, de Afrânio Peixoto, e viu a razão porque Dr. Davey, seu pai, amava tanto Portugal… Porque, sem ter conhecido a tricana do Mondego, venerava-a com o mais puro amor, como à sua Universidade: à Biblioteca Joanina, altar mor da cultura… No seu Noturno está confessado esse amor!

Rita, professora de letras, com planos de morar temporariamente em Coimbra, para conclusão de estudos, leu, para Glauco, Anderson e Uiara, Um dia no Rio, tecendo, ao fim, criticas favoráveis ao estilo do autor, que, sendo sinceras, tomei-as por condecoração.

Ouvimos boa música… A guitarra de Joaquín Rodrigo executando os concertos Madrigal e Andaluz; fados com Maira da Fé e Paula Ribas, que cantou Canoas do Tejo, que poderia chamar-se Fado de Hilca…

Canoa de vela erguida,
Que vens do Cais da Ribeira,
Gaivota que anda perdida,
Sem encontrar companheira…

Magnavita ouviu Alcides Gerardes cantar a Cabecinha no ombro, e cantarolou com certa nostalgia fazendo dueto nestes versos…

Quem chora no meu ombro
Eu juro que não vai embora…

Como está bem casado há 54 anos, deduzo que não cantarolou em vão: Houve choro no seu ombro…

A Sericaia ao lume

Enfim chegou a hora da Sericaia… Panela à mesa (vai à mesa na mesma panela do preparo), serviram-na. Degustaram-na… Foi uma unanimidade: Maravilha!  Rômulo, gastrônomo amador, foi à cozinha saber de Hilca detalhes do preparo. Como disse que fará a Sericaia, devo transmitir-lhe, agora, o conselho que não pude dar-lhe naquela noite: Cuidado, Sericaia, quando feita com intenção, arranja casamento… Que o diga D. Emerlinda!

Já recebi estes comentários: “Ainda em estado de graça pelo prazer do banquete de ontem, sublimado pela sericaia…” (Dr. Magnavita); “Quando esses amigos se encontram é sempre muito bom e desta vez com a degustação, ou melhor, comilança (não sobrou nem um pedacinho) da maravilhosa Sericaia” (Dr. Gidi).

Magnavita, Fernando, Glauco, Gidi, Paulo e Anderson

À saída, coloquei a Balada da Despedida, letra e música de Fernando Machado Soares, grande cantor do fado coimbrão, que tive a ventura de conhecer pessoalmente, para Dra Ogvalda ouvir (o fado de Coimbra é diverso do fado de Lisboa, embora haja quem diga, não sei se com razão, que é um derivativo deste. Em Coimbra o fado a vida acadêmica estão intimamente casados, desde que o Hilário, boêmio estudante de medicina, o cantava altas noites no choupal… Sinto-o mais sentido; a guitarra, que se trina com mais solenidade, emite acordes mais plangentes, e as letras são poemas mais elaborados. Cantado, tradicionalmente, apenas por homens, quase sempre estudantes, essas aves de arribação, cujos amores, diz o Vira de Coimbra, não duram mais que uma hora, e terminam, muitas vezes, sob a negra capa que o abrigou…):

 

Coimbra tem mais encanto
Na hora da despedida.

Que as lágrimas do meu pranto
São a luz que me dá vida.

Coimbra tem mais encanto
Na hora da despedida.

Quem me dera estar contente
Enganar minha dor
Mas a saudade não mente
Se é verdadeiro o amor.

Coimbra tem mais encanto
Na hora da despedida.

Não me tentes enganar
Com a tua formosura
Que para além do luar
Há sempre uma noite escura.

 

Não se canta o fado de Coimbra sem a capa; não se canta o fado de Lisboa sem o xaile (se o cantar, sem a capa ou o xaile, não o faz com regra). Ambos, capa e xaile, negros, símbolos de solenidade, não propriamente de tristeza, porque, como disse Fernando Pessoa, “o fado não é alegre nem triste. É um episódio de intervalo”. Assim terminado esse nosso encontro, espero seja breve o intervalo que nos separa do próximo…

Fernando Guedes
25/9/2011

 

 

ago 29, 2011 - Riacho de Santana    4 Comments

Elogio da Sericaia

Crentes, comei as coisas boas, que eu vos destinei, e agradecei ao vosso Deus, em vossas preces.

Alcorão

 

Foi nos conventos femininos que a elaboração doceira atingiu notoriedade, destinada a uma elite consumidora, habituada aos melhores paladares.

Alfredo Saramago, in Doçaria Conventual do Alentejo

 

 

Não pense besteira, porque é doce fino, merecedor de uma página literária… Como a não encontrei entre as dos nossos clássicos, tentarei preencher a lacuna com a precariedade da minha pena.

Família do Cel. Eujácio Castro

É nome feminino, sobre cuja etimologia os dicionaristas divergem. A fonte mais antiga que consultei, Diccionario Critico e Etymologico da Língua Portugueza, de Francisco Solano Constâncio, edição de 1858, diz que talvez venha do grego siraion, que significa vinho fervido com especiarias. O Caldas Aulete, edição de 1980, não opina sobre a origem da palavra, mas a edição eletrônica atual afirma ser proveniente do malaio serikaya, o que está em acordo com o Houaiss: do malaio srikáya, manjar composto de leite, ovos e açúcar, com datação de 1609. Admitamos, pela lógica, que esta seja correta, para resolver o problema da etimologia. Cuidemos agora da origem da receita…

É outro ponto controverso para os gastrônomos portugueses, porque uns afirmam ser indiana, ao passo que outros a reputam brasileira. Na Gastronomia e Vinhos do Alentejo, magistral obra coordenada pelo antropólogo eborense Alfredo Saramago, à página 242, lê-se esta afirmação: “A dúvida nunca mais se resolve. Uns dizem que a receita veio da Índia, outros que ela veio do Brasil. O que é certo é que desde os tempos da nossa Expansão que a sericaia ou sericá era executada, com todo o esmero, por dois conventos alentejanos que se arrogavam de direitos de importação da receita.” Os dois conventos são o das Chagas de Cristo, de Vila Viçosa e o de Santa Clara, de Elvas. Este o chamou, ao doce, Sericaia; aquele o batizou de Sericá. Sou mais pela origem brasileira, porque tenho, para isto, irretorquível razão, que adiante revelarei…

À Rua Portas de Santo Antão, 58, em Lisboa, está a Casa do Alentejo, nesta um bom restaurante oferece, entre as sobremesas regionais, Cericá com Ameixa de Elvas. Em Elvas serve-se a sericaia com suas famosas ameixas, as melhores de Portugal, que provem de ameixeiras “Rainha Cláudia”. Então há: Sericaia, Sericá e Cericá, em Portugal. No Brasil apenas Sericaia.

Compulsei Doçaria Conventual do Alentejo, outra obra maravilhosa de Alfredo Saramago, em busca das receitas alentejanas…

Num litro de leite, desfaça 250 gr. de farinha de trigo, uma pitada de sal e 12 gemas de ovos bem batidas. Ponha 500 gr. de açúcar em ponto de pasta e deite a mistura. Retire do lume, ponha num prato de estanho, golpeie levemente com uma faca, do centro para fora, e ponha no forno a tostar.” (Do livro de receitas do Convento das Chagas de Cristo)

“Bata 12 gemas com 500 gr. De açúcar e misture muito bem 200 gr. De farinha com um litro de leite. Misture tudo e ponha no lume. Assim que começar a tomar a consistência de um creme, retire do lume e deixe arrefecer. Bata as claras em castelo e misture com o creme. Ponha uma pitada de canela e o sumo de um limão.

Deite tudo num prato de estanho, às colheradas grandes, de uma forma desencontrada. Uma é posta no sentido do centro para as bordas e a outra é atravessada. Polvilha-se com canela em pó por cima e vai ao forno.” (Do livro de receitas do Convento de Santa Clara)

Como se pode deduzir, a farinha, em ambas as receitas, implicará uma consistência mais ou menos firme, permitido que o doce seja cortado em fatias, para ser servido à moda de Elvas, com ameixas em calda ou simplesmente só. Assim, sem ameixas, é como costumo comer a sericaia quando freqüento o Da Silva, no Rio de Janeiro. Estranha-me a ausência da canela na receita do Convento das Chagas de Cristo. Por quê? Não o sei! Talvez porque a canela evoca a mulher…

D. Mariquinha

Mas, há outra receita que considero a melhor de todas: A do caderno de Maria Magalhães Castro, Dona Mariquinha, esposa do Coronel Eujácio de Souza Castro. Esta receita foi passada para sua filha Matilde Magalhães Castro (Tia Tide), que a confiou à sua, Nilza Castro, portanto uma tradição familiar. Ei-la:

Ponha dois litros de leite para ferver com a canela em pau, até reduzir o volume a um litro e deixe esfriar. Acrescente-lhe dez gemas de ovos peneiradas, uma xícara de açúcar, uma colher das de café de sal e misture. Peneire a mistura numa panela de alumínio ou esmaltada, para torná-la mais fina e homogênea. Acrescente-lhe duas colheres das de sopa de manteiga e polvilhe com canela toda a superfície. Leve ao banho-maria por uma hora e meia, com um braseiro sobre a panela.

O resultado, acreditem, é o mais fino e saboroso creme que o gosto pode experimentar. Saboreado, com um cálice de Vinho do Porto, ultrapassa o limite do profano, para ser o “manjar dos Deuses”. Com esse manjar esses Castros, em Riacho de Santana, excederam-se na fidalguia de bem receber e agradar… Eu sempre fui distinguido com tal fidalguia e, para continuar a tradição, incentivei Hilca a aprender, com Nilza, o preparo da sericaia.

A razão da minha convicção sobre a nacionalidade da receita está em Bugrinha, romance regional, de Lençóis, o coração diamantino da Bahia, quando o autor a menciona em interessante passo. Dona Ermelinda, mãe de várias moças, dialogando com o senhor Matos Contreiras, que lhe oferecera um livro de receitas de doces, diz:

Olhe, precisa ir lá em casa provar uma especialidade minha… um doce da terra… uma “sericaia”…

D. Ermelinda, diziam, prendia os futuros genros com a sericaia… Provou, casou. Se não quer, não coma da sericaia de D. Ermelinda.

Outra personagem, Pereira Miranda, que conhecia a astúcia de D. Ermelinda e a fama casamenteira de sua iguaria, advertiu Matos Contreiras:

– Se comer da “sericaia”, é tiro e queda…

Isto é, casamento certo!

Que quis dizer o mestre da poligrafia brasileira, conhecedor profundo da cultura portuguesa, pela voz de sua personagem, com as expressões: especialidade minha e um doce da terra? D. Ermelinda, baiana, de Lençóis, estaria corroborando a origem brasileira da receita? Estou convencido disto, e de mais: receita baiana! Como a de D. Mariquinha, em que a farinha não entra, para não corromper a delicadeza do creme, creme capaz de arranjar até casamento…

Matilde Castro

Os “doces” baianos descendem dos portugueses, porque é honra a boa tradição, havendo o elemento autóctone, que, graças a Deus, não é somenos (Afrânio Peixoto). Não sei se convencerei os gastrônomos portugueses de que a dúvida está resolvida: É brasileira, da Bahia, a sericaia, um desses elementos autóctones da nossa doçaria conventual ou patriarcal, que, entretanto, não diminui a Elvas e Vila Viçosa o mérito da propagação da iguaria.

 

Fernando Guedes

29/8/2011

 

jul 27, 2011 - Poligrafia    7 Comments

Um dia no Rio…

Eu acho que se trabalha demais no mundo de hoje, que a crença nas virtudes do trabalho produz males sem conta e que nos modernos países industriais é preciso lutar por algo totalmente diferente do que sempre se apregoou.

Bertrand Russell, in O Elogio ao Ócio

 

Estou, novamente, neste Rio de São Sebastião, sentindo a parte que me cabe do largo abraço do Redentor… Contemplo-o, sempre, lá no seu soberbo pedestal, o Corcovado!

Às oito sai da Senador Dantas, ali na Cinelândia, rumo ao trabalho, na Graça Aranha. Passando pela Santa Luzia, detenho um pouco os passos para uma reverência àquele número 54, onde outrora viveram, por três anos, Machado e Carolina… São desse período Histórias da meia-noite, Falenas, Ressurreição e A mão e a luva. Faço a reverência e lá me vou, imaginando o centro do Rio do tempo do Bruxo do Cosme Velho… Passo entre os pilots do Palácio Capanema com atenção redobrada, para admirar aquele ícone da nossa corbuseana arquitetura moderna. Contemplo os azulejos de Portinari, as esculturas de Giorgi, Lipchltz e Menezes, testemunhas de uma época em que havia homens preocupados com educação e cultura…

No trabalho, cumpro a minha obrigação funcional, estoicamente, sem, contudo, me comprometer ao ponto de achar que é a coisa mais importante da vida. Recuso-me em admitir o trabalho como um fim, como um valor. Não é… Não o será! Um valor é o que vale por si só. Como o amor, a generosidade, a justiça, a liberdade… Para amar, quanto você cobra? Já não seria amor, seria prostituição. Para ser generoso, justo, livre, precisam lhe pagar? Já não seria generosidade, mas egoísmo, já não justiça, mas comércio, já não liberdade, mas servidão. Para trabalhar? Você cobra alguma coisa e evidentemente tem razão; aliás, quase sempre acha insuficiente o que lhe dão (sim, não é um dom, é uma troca), o que está registrado no seu holerite, contracheque, recibo ou nota de serviços… Há um mercado de trabalho, submetido, como qualquer mercado, à lei da oferta e da procura. Como trabalho pode ser um valor se está à venda? (André Comte-Sponville). O trabalho é somente um meio, tedioso muitas vezes, mas somente um meio, necessário à sobrevivência. Somente para sobreviver o trabalho é necessário. Para viver e conviver ele é dispensável, porque são necessários outros atributos, onde ele não colabora. Idolatrá-lo, longe de mim, que escuto o Redentor advertir, lá da montanha: – “Mandei que amassem uns aos outros, não que trabalhassem uns e outros”!

Quando saímos para o almoço já passava do meio-dia, como é a praxe aqui, onde se “ama” o trabalho e a ele se apega como um fim… Eu, Sérgio, Maurício, Paulo e Ailton, este numa estica à Zegna, com aquela gravata estreita combinando com o terno talhado à italiana, fomos ao Clube Ginástico Português, ali perto, para um almoço à portuguesa, no Da Silva.

Foi um deleite para o gosto: caçarola de cordeiro, leitão à Bairrada, bacalhau, dobrada a moda do Porto e já não sei o que mais… Pedi uma taça de Vila do Convento que, ao primeiro gole, provocou-me evocações do Alentejo… de sua Princesa: a Sé, mais rica jóia, de cujo zimbório central disse Martim Hume que valia a pena vir de Inglaterra a Portugal só para vê-lo; a praça de Geraldo Sem-Pavor, a Fonte Coroada, a Igreja de Santo Antão, seus Conventos, suas ruínas, o asseio de suas ruas, suas laranjeiras…Évora! Alentejo! Como são lindos seus campos e suas ceifeiras…

Ceifeira que anda à calma

No campo ceifando o trigo

Ceifa as pena da minh´alma

Ceifa-as e eleva-as contigo…

Para completar o deleite gastronômico, os doces: toucinho do céu, sericaia (ou siricaia, feito pelo método tradicional, que tia Tide – Matilde Castro – dominava com esmero, é o que se pode chamar de “Manjar dos Deuses”), encharcada, clara de Évora, travesseiro de Sintra, pudim de Vinho do Porto… Delícias de origem conventual, por várias causas, que vale a pena lembrar. Primeiro, conventos de freiras, mulheres a quem os doces eram familiares. Depois, meter freira em convento era, às vezes, abastado, e além do dote, elas, as filhas de ricos-homens, lá iam com suas escravas, e, estas, quituteiras, se entretinham na fábrica dos doces. Doces a oferecer a prelados e a grandes do mundo, nos oiteiros e saraus, à cerca dos conventos, onde concorriam poetas e mariolas, devoradores de doces (Afrânio Peixoto). O elemento predominante nos doces é o açúcar, que adoçou tantos aspectos da vida brasileira que não se pode separar dele a civilização nacional. Deu-nos as sinhás de engenho. As mulatas dengosas. Os diplomatas maneirosos (…) Os políticos baianos – os mais melífluos e finos do Brasil. A toada dos cambiteiros. Os cantos das almanjarras… (Gilberto Freire). Comi de todos, porque, com tal santa origem, não cometeria o sacrilégio de ignorá-los… Os outros, que andam aliciados por essa cultura da “alimentação saudável”, ficaram com as frutas… Entre quatro sacrílegos, par equilibrar a turma, um baiano devoto! Tomamos café, pagamos a conta e nos retiramos… Descemos pelas escadas, observando a suntuosidade decadente o prédio, mas sem deixar de imaginar o que fora aquele recinto em décadas passadas…

Todo esse deleite cultural-gastronômico foi completado, na volta, com um espetáculo muito carioca, ao vivo, sem cortes, sem edições… Ao atravessar a Almirante Barroso, o clima instável fez bater um pé-de-vento que levantou a saia de uma incógnita apreciável… Não era dessas esquálidas, insossas, que só têm, para mostrar, rotulas e protuberosidades ósseas… Aquela não, tinha com que cobri-las, porque era naturalmente esculpida, esteticamente modelada… A minúscula calcinha estampada deixava-lhe as nádegas livres, que tremulavam impudentes, como um pendão nacional que ao vento tripudia… Ela não se importou com o vento… Não segurou a saia, seguiu impávida, com a certeza de que era admirada!

Aquietou o vento fazendo a saia ocultar aquela natureza viva, como o pintor cobre, na oficina, com um véu, sua natureza morta inacabada… Cruzamos a porta giratória da Torre Almirante, para continuar a rotina do trabalho…

 

Fernando Guedes

Rio de Janeiro, 18/7/2011

 


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