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fev 2, 2012 - Riacho de Santana    1 Comment

Brás

 

Há, em todas as comunidades, um tipo humano que se caracteriza pelo desprendimento e se conforma, espontaneamente, com sua condição, seja ela qual for… Espirituoso, convive bem, tendo o humor como um traço marcante de personalidade. São emblemáticos dessa categoria vários riachenses: Pedro “Joli”, tio de meu pai, que tinha das suas; Júlio “Frito”, cuja história de namoro com certa moça da Rua Grande, por ele contada, levava-nos às gargalhadas; Deraldo Coutinho, que muito aprontou… Passando, certa feita, por uma lavoura de arroz já cacheando, na Canabrava, viu a sua saída para a falta de dinheiro… Colheu alguns cachos e se dirigiu para a cidade. Foi ao escritório de Augusto Carvalho e o convenceu comprar, à vista, algumas arrobas do produto, que lhe não pertencia… Como tudo neste mundo tem troco, traiu-o o próprio papagaio, que não aprendera mentir: denunciou, a um freguês incauto, que o toucinho que seu dono vendia estava ardido. São muitos… Muitas!

No dia 3 de fevereiro de 1932 nasceu, em Riacho de Santana, no sítio Nazaré, o segundo filho de Deocleciano e Matilde Castro… O menino teria a predestinação de vários nomes: Batizado José, registrado Alírio de Assis, apelidado Brás. Como o apelido, como sempre, é o comandante da identidade, Brás é seu nome. Foi Joaninha, de Júlio, quem o deu.

Aos nove meses foi entregue, por sugestão do Coronel Chiquinho, que ninguém ousava contrariar, ao casal João Castro (irmão de Deocleciano) e Glória (irmã de Matilde), para ser cuidado até um ano de idade. Acontece que o casal se apegou ao menino e não o devolveu mais… Foi mandado a Caetité para estudos, mas não prosseguiu neles, concluindo apenas o primário. Com João e Glória viveu toda uma vida, só deixando a Rocinha com a morte dos seus senhores.

Em 1955, depois da procissão de 15 de agosto, trajando terno branco foi esperar a noiva à porta da Igreja… Quando ela saiu, Celeste que a acompanhava, vendo-os de brando, desafiou: Por que não se casam agora? Casaram-se! Casou-se com Mariá Castro, professora ativa, que se dedica à culinária de bons doces, com quem teve quatro filhos, todos nascidos e criados na Rocinha… Ah! O primeiro filho só apareceu um ano depois, dissipando aqueles maledicentes comentários, que a pressa do casamento fomentara…

Com o Brás armênio, médico, santo auxiliador e protetor da garganta, que lhe emprestou o apelido, só encontrei a aproximação do 3 de fevereiro. Com o Brás francês (Blaise Pascal), filósofo moralista, tampouco… Encontrei semelhança com a personagem picaresca de Alain-René Lesage, Gil Blas de Santillana, que também foi criado e educado por um tio, em Oviedo…  Blas (que é Brás em espanhol) foi mandado a Salamanca para estudar, mas não estuda, iniciando suas peripécias humorísticas aos dezessete anos… Para fechar a aproximação que se me apresentou, comparei Oviedo com a Rocinha, Salamanca com Caetité, Blas com Brás, e conclui que o caráter do nosso, sem dúvida, é melhor que o do espanhol…

Estava com dezesseis anos quando começou acompanhar Álvaro Castro, seu primo, “professor” graduado em brincadeiras de bom e mau gosto, nas farras e festas. Alvinho, que morreu cedo, de uma provável insuficiência cardíaca, o chamava  “meu Brás”.

Foi a dupla a uma festa, em Santa Rita… Chegando à fazenda, no local onde deviam deixar os cavalos arreados, Alvinho, cujo senso de pilhéria perecia estar sempre a postos, lhe disse:

– Vamos aprontar uma, meu Brás!

Voltaram um pouco distante da casa e desarrearam seus cavalos, escondendo ali as selas. Sem serem percebidos, trouxeram os cavalos desarreados, deixando-os juntos aos demais, que foram também desarreados e as selas jogadas numa cisterna próxima. Entraram, para se reunir com os outros convivas; dançaram, beberam rabo-de-galo… Alvinho fumou charutos… Quando a festa terminou, próximo ao raiar do dia, os cavaleiros foram apanhar seus animais para empreenderem a torna-viagem, mas se surpreenderam com os cavalos desarreados. Foi uma celeuma! Quem fez isto? Perguntam-se em uníssono!

– Isto só pode ser coisa de Alvinho e Brás, disse um muito irritado.

– Não, não é… Os cavalos deles também estão sem as selas, interveio outro, em tom de conciliação.

Chegaram Brás e Alvinho e, de manha, para despistar a turma, este foi logo perguntando:

– Alguém viu quem fez essa desgraça?

Procuraram em torno, de mentira, para desfazer o resto de desconfiança, e saíram puxando os cavalos, deixando o grupo metido na confusão. Lá adiante, fora do alcance dos outros, arrearam os animais e foram-se embora.

O tumulto perdurou por mais algum tempo, mas logo se convenceram que não tinham o que fazer. Puxaram seus cavalos e também se foram…

Quando o dia clareou, o anfitrião foi à cisterna apanhar água… Destravou o sarilho, mas a lata não desceu. Removeu a tampa e se deparou com as selas… Não teve mais dúvida: aquilo só podia ser obra de Alvinho e Bás!

Recém-casado, aprontou com Mariá, sua esposa. Fingiu loucura… De revolver na mão, olhava-a estranhamente e repetia, com insistência, a frase ameaçadora:

– A gente mata que ama!

Certo dia, a jovem esposa, acreditando que ele enlouquecera e que podia consumar a ameaça, logo que o viu de revólver na mão, começou a chamar tia Glória, sussurrando, para não irritá-lo:

– Tia… Tia… Tia…

Num almoço, naquela grande mesa do varandado da Rocinha, em torno da qual estavam reunidos muitos convivas, inclusive visitantes ilustres da família e amigos (Érico, Sr. Fábio, Clemente, Bilé, Rosana etc.) aprontou com Virinha. Olhava-a ameacadoramente segurando grande faca, que estava à mesa para cortar a carne… Levantou-se abruptamente em sua direção e ela se pôs a correr, pelo carreiro que levava aos passadiços próximos ao São Félix. Saltou o primeiro, e ele atrás; correu ainda mais, mas não conseguiu saltar o outro, onde se entregou ao relaxamento dos esfíncteres…

São tantas as histórias de Brás, que dariam um livro!

Caminhando pela Rua de Trás, parou para cumprimentar Generaldo, que estava à janela, debruçado…

– Bom dia Generaldo, como vai!

Queixoso, como sempre, com aquela voz mansa e cantada, respondeu Generaldo:

– Não tou bom não Braizin

– Tá doente? Perguntou-lhe Brás.

– São as vistas, disse Generaldo, que não me deixam ver mais nada. Mal divulgo as coisas… Só o conheci pela voz.

Nesse momento passava pela calçada uma balzaquiana trajando um vestido fino, que deixava à mostra certas proeminências daquele corpo em desalinho. Cumprimentou-os e seguiu. Quando ela estava distante, Generaldo, quem mal enxergava Brás, perguntou:

– Você viu Braizin?

– O quê, Generaldo?

– Como ela está singela…

Brás logo percebeu que não era mais de oculista que Generaldo necessitava…

De outra feita, a vítima foi Mário de Zeca Rocha… Foram ao Benedito Cigano, onde Brás devia tirar o leite e trazê-lo para a Rocinha. Sabendo que Mário andava com dificuldade para alimentar uma junta de garrotes, Brás lhe propôs uma troca: Ajuda-me tirar o leite e carregar a lata, que lhe permito deixar os garrotes no pasto. Mário tirou o leite e carregou a lata… No meio do caminho, Brás, fingindo loucura, tirou a roupa, arregalou os olhos, assanhou os cabelos e, com porrete na mão, partiu na direção de Mário, que desatou a correr. Chegou à Rocinha em frangalhos, arfante, sem conseguir articular uma só palavra… Vendo-o naquele estado de choque, tia Glória, com aquela paciência de Jó, preparou o calmante clássico do sertão (água com açúcar) e lhe deu para beber… Alguns minutos depois perguntou:

– E Brás, meu filho, onde está?

Mário, respirando fundo, buscando se acalmar, respondeu:

– Enlouqueceu Dona Glória… Vem aí nu, com um porrete na mão!

Logo depois chegou Brás, calmo, vestido, penteado, preocupado com Mário, que desatou a correr, sem motivo, como que estivesse fugindo de uma assombração…

“O riso é um desabafo, uma revolta, uma vingança de nossa personalidade, constrangida à atenção, à coerência, ao respeito, ao medo, que nos são impostos, por nós mesmos, ou por outrem. Por isso tal libertação é alegre e, às vezes, gloriosa”. Creio que Brás, na simplicidade de sua vida, soube compreender bem essa profunda lição filosófica.

Por em realce esse traço marcante de sua personalidade, que admiro, é a minha homenagem nos seus 80 anos.

 

Fernando Guedes

3/2/2012

 


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