Archive from março, 2000
mar 30, 2000 - Poligrafia    No Comments

Subserviência lingüística

Os brasileiros amamos a colonização. Outrora o conquistador aqui chegou e se deslumbrou com a terra. Deu-lhe nome sagrado, e começou a explorá-la predatoriamente. A gente que aqui encontrou logo percebeu que era “boa e de boa simplicidade”, que podia fazer dela o que quisesse. Não contente em também explorá-la, de ludibriá-la com estratagemas ridículos, de impor-lhe sua crença, dizimaram-na quase que totalmente. Hoje os que restam são párias aculturados. Os descendentes dessa gente, com a qual se misturaram fidalgos, degredados, criminosos, heréticos, contrabandistas, etc., que somos nós, não perderam o amor pela colonização. Tudo que é de fora é melhor que o nosso, em todos os aspectos. Até o idioma, que é a primeira condição da cidadania, preferimos o estrangeiro: colonização cultural.

Neste particular, já somos um povo quase sem identidade própria, porque a nossa subserviência lingüística é tão marcante que já não sabemos que idioma falamos. E o mais absurdo nesta questão é que os abusos partem de pessoas de quem não se devia questionar o esclarecimento, porque de instrução superior. Não me refiro às sutilezas do idioma pátrio, que só são observados por quem lhe tem apreço; nem dos deslizes que se cometem na linguagem coloquial, que são em todos os idiomas relevados; nem da evolução própria aos idiomas vivos, dos esquecimentos etimológicos que transformam significados. Não, não é contra isto que me insurjo. Cinjo-me ao emprego de estrangeirismos desnecessários e impróprios, muito ao gosto de certos técnicos que não têm o cuidado de traduzir textos estrangeiros respeitando o vernáculo, e aí criam verdadeiros absurdos, que subvertem as normas da gramática portuguesa.  E o que é mais grave nessa subserviência idiomática é que esses estrangeirismos nos são impostos como termos corretos, que terminam disseminados por aí afora por pessoas que desconhecem o idioma pátrio, ou que não têm por ele nenhum apreço: ignorância e desamor são móvel da colonização cultural.

Recentemente, numa discussão técnica, com um conceituado assessor para certificação ISO, perguntei-lhe se não seria conveniente trocar, no texto de um procedimento de inspeção e ensaio, o termo inglês tag para o português etiqueta, e tagueamento (nem inglês, nem português) pelo substantivo etiquetagem, formado do verbo etiquetar, que são galicismos já absorvidos pelo vernáculo. A reposta foi não, e quis me convencer que tag é diferente de etiqueta. Compulsei o Webster, um dos conceituados e mais completos dos dicionários do idioma inglês, e não divisei essa diferença; ao contrário, tag, na acepção aplicável ao dito texto, é etiqueta, rótulo ou marca. Então, não há nenhuma justificativa lingüística que possa sustentar o emprego do estrangeirismo, porque há no português termos adequados à clareza da escrita. Por que só o termo tag, e não todo o texto em inglês? Seria mais razoável!

Foi com grande satisfação que li no A Tarde, edição de 11/3/2000, a notícia que o deputado Aldo Rabelo elaborou um projeto de lei em defesa do uso do idioma pátrio, que estabelece pesadas multas contra quem incorrer no uso de expressões estrangeiras, quando houver equivalentes em português. Não espero que lei possa fazer o que a educação não fez, mas quem sabe atingidos na algibeira certos brasileiros se convençam que o nosso idioma é o português, e aí se dêem ao trabalho de consultar bons dicionários, para que possamos gritar “independência ou morte” contra os grilhões da servidão lingüística, e começar a garimpar “o ouro nativo, que na ganga impura, a bruta mina entre cascalhos vela”.

Fernando Guedes

30/3/2000

mar 2, 2000 - Poligrafia    No Comments

Cidadão, mas… “nem tanto”

Determina a Constituição desta República, essa mesma que os políticos vivem a emendar, de acordo com as conveniências do momento, no seu artigo 196, que “a saúde é direito de todos e dever do Estado”, ao qual a prática da vida cotidiana acrescentou um “parágrafo único”, que bem poderia assim ser redigido: “somente para os cidadãos inteiros”. É que nesta deformada República há duas categorias de cidadão: “inteiro” e “nem tanto”. “Inteiro” é cidadão para os qual nada falta, inclusive a eficiência da justiça, a que se chega pelos serviços de notáveis advogados, regiamente pagos… “Nem tanto”, ao contrário, é aquele a que tudo falta, porque lhe falta aquilo com que se compra tudo… e vive da quimera de que é igual à outra perante a lei. Como é a maioria (Napoleão não entendia porque os pobres, imensamente majoritários, não dizimavam os ricos, que são a minoria), essa classe tem duas utilidades muito apreciadas pela elite dominante: sua crença inabalável nos políticos, e a sua capacidade de estimular o falso sentimento dos mercadores de benemerência, essa espécie de gente que vive de fazer cortesia com chapéu alheio, e que já produziu até beatos, para júbilo dos hagiólatras. O que há por aí de instituições de piedade dá até para desconfiar, sendo os brasileiros o que são… De falsas promessas e esmolas sobrevivem às mais desfavoráveis condições, com uma resignação impressionante, sempre dóceis e humildes ao mau trato, debitando sempre seu fado à vontade de Deus.

Desde o princípio, já era assim em Santa Cruz: “esta gente é boa e de boa simplicidade. E imprimir-se-á ligeiramente neles qualquer cunho que lhes quiserem dar”.

Tudo isto é para contar uma breve história de um “nem tanto”, que conheci recentemente. Trata-se de A. F. dos R., 62 anos de idade, mecânico, residente em Paripe, que em 8 de dezembro de 1999, no trajeto do local de trabalho para sua residência, foi atropelado e sofreu sério traumatismo no antebraço direito. Como era o dia de N. Sra. da Conceição da Praia, ocasião em que tudo pára em homenagem à Santa, lá pelas bandas onde mora não encontrou socorro médico. No dia seguinte procurou uma clínica em Paripe, dessas que trabalham para o SUS, onde fez uma radiografia, que revelou fratura. Recebeu uma tala de gesso no membro fraturado, e saiu com a orientação de consultar um cirurgião de mão, porque havia a indicação de correção cirúrgica da fratura. O “nem tanto” começaria a provar, na própria pele, sem o saber, o que significa não estar enquadrado no “parágrafo único” a que acima nos referimos, e saiu em busca do especialista, e o procurou, procurou; bateu em portas várias, e só ouvia uma resposta: custa três mil reais; pelo SUS, não tem conversa… Mas não estava de todo sem sorte, encontrou, no Pau da Lima, uma Clínica maneira, que lhe cobrou, pela operação, a módica quantia de trezentos e setenta reais, isso depois de peregrinar de serviço em serviço, durante mais de 30 dias. Como o empregador só é responsável pelo pagamento dos quinze primeiros dias após o acidente, e a sua primeira perícia médica, no INSS, a que o habilitaria a receber o auxílio-doença, só se realizou em 1/2/2000, não é preciso dizer que o meio-cidadão estava, a esta altura, literalmente na lona: contas de luz e água atrasadas, sem dinheiro para o gás, para a comida, para os remédios, para o transporte etc. Diante de si só burocracia, desdém, incompreensão, humilhação… Se lamentou, ninguém lhe deu atenção; se chorou, nenhum burocrata lhe observou as lágrimas; a medicina, tão presunçosa e desenvolvida, rejeitou-lhe eficácia, e o meio-cidadão seguiu seu itinerário, conformado com a sua sorte… À noite, vencido pelo cansaço do seu peregrinar pelas filas da indiferença, liga o televisor, que provavelmente ainda não o quitou, e observa um desfilar de noticias antitéticas: “o antes e o depois” das cirurgias plásticas de deputados, senadores, governadores, ministros e demais cidadãos inteiros, e a morte de recém-nascidos cujas mães foram rejeitadas em maternidades superlotadas; vê um ancião morrer na sala de espera de um hospital, sem socorro, e, no mesmo bloco fica sabendo que o resfriado de notável figura da política é cuidado por uma equipe de renomados especialista; assiste ao relaxamento da prisão de um criminoso abastado, enquanto um pobre coitado luta, há mais de dois anos, para provar que fora preso por engano; ouve o apresentador dizer que autoridades se servem de aviões da Aeronáutica para viagens de lazer, e logo notícia que na capital econômica do país faltam ambulâncias para transporte de doentes pobres; muda de canal e observa um galhardo delegado, do Mato Grosso, dando eficiente proteção a iguanas, sarigüês e jibóias, e, logo em seguida, ouve dizer que crianças foram assassinadas por traficantes, numa escola desprotegida do Jacarezinho. Fica sabendo que um pobre matuto do sertão foi preso, em flagrante delito, pela eficiente polícia florestal, porque cometeu o hediondo crime de matar duas juritis, para aplacar a fome dos seus filhos, enquanto um famoso craque do futebol foi apenas condenado a pagar cestas básicas, porque cometeu o chique delito de assassinar uma “nem tanto”, com seu luxuoso automóvel.  Assiste ao faz-de-conta das comissões, à mentira dos inquéritos, à banalização da atividade parlamentar, ao nepotismo de autoridades, ao escandaloso desvio de verbas públicas, reflete sobre sua condição e se convence que é cidadão, mas… “nem tanto”.

Fernando Guedes

2/3/2000


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