Archive from julho, 2009
jul 16, 2009 - Poligrafia    3 Comments

As galinhas em holocausto…

É impressionante a insensatez com que certas questões de saúde pública são tratadas na mídia e como os “doutores” do presente se deixam influenciar por essa corrente de meias-verdades, para não correrem o risco do contraditório. Na medicina isto virou dogma desde muito. Já Miguel Couto, que não transigia com os princípios da boa técnica, advertia: “Abundância em medicina é penúria”!

É o que precisamente está ocorrendo com esse fenômeno que se convencionou chamar de “gripe aviária”, onde já não se comunica com clareza as coisas. No mesmo instante que falam de gripe aviária, falam de pandemia de influenza, sem esclarecer se serão as galinhas ou os humanos as vítimas da doença. Pelo que tenho visto, até agora, são as galinhas que estão sendo oferecidas em holocausto.

Do que estão falando afinal? Onde a diferença? Bem, a gripe humana (ou normal) é uma doença respiratória freqüente e aguda, autolimitada, causada pelo gênero A do orthomyxovirus (influenza), que está na origem das epidemias anuais. A gripe das aves, que foi identificada na Itália há século, é uma doença contagiosa, causada também pelo gênero A do orthomyxovirus, que infecta aves e porcos e que, quando raramente infecta o homem, não se transmite entre pessoas. Há 15 subtipos do vírus que podem ser encontrados nas aves, mas os casos detectados até o momento foram dos subtipos H5 e H7.

É sabido que aves selvagens aquáticas são consideradas reservatórios naturais desses vírus; como também se sabe que populações de galinhas domésticas são particularmente susceptíveis a eles e podem ser o veículo de epidemias de rápida propagação.

Os vírus não se propagam facilmente das aves para as pessoas. A transmissão se dá após um período prolongado e reiterado de contacto em espaços confinados com secreções respiratórias ou fezes de animais contaminados, tanto por contacto direto como indireto.

Em 1997, em Hong Kong, foi documentado o primeiro surto de infecção humana da gripe das aves. 18 pessoas foram infectadas pelo vírus H5N1. A transmissão se deu pelo contacto próximo de pessoas com aves infestadas. Em três dias, 1 milhão e meio de galinhas foram sacrificadas.

Em 1999, em Hong Kong, 2 crianças foram infectadas pelo vírus H9N2.

Em 2003, houve novo alarme quando um surto de gripe das aves pelo H5N1 infectou 2 duas pessoas de uma família que viajara ao sul da China. Neste mesmo ano, 1 pessoa se infectou com a cepa H9N2, em Hong Kong.

Em 2003, foi documentado que 83 pessoas, que trabalhavam em criação de galinhas, nos Países Baixos, foram infectadas pelo vírus H7N7. Todas as galinhas foram sacrificadas.

De 2004 a novembro de 2005, em 8 países da Ásia, 132 pessoas foram infestadas pelo vírus H5N5. Novamente, o sacrifício em massa de galinhas…

No presente ano, até 12/05/2006, em 10 países da Ásia, 64 pessoas foram infectadas pelo vírus H5N1. Mais galinhas ao sacrifício! Ainda bem que elas, no enlevo da procriação, se dão facilmente…

O que chama a atenção nesses surtos é que a transmissão está relacionada com o negócio das galinhas, portanto doença ocupacional, que bem poderia chamar-se “doença dos galinheiros”.       Não se registrou transmissão entre pessoas (salvo uma questionada transmissão limitada em profissionais de saúde sem nenhuma gravidade) e isto descaracteriza a possibilidade de uma pandemia de gripe das aves em humanos. Uma pandemia só pode se iniciar se as seguintes condições ocorrerem:

1. Surgimento de um novo subtipo de vírus influenza,

2. Esse subtipo infectar humanos e

3. Haver transmissão efetiva e sustentada entre humanos.

Os dois primeiros pré-requisitos para o inicio de uma pandemia foram atendidos por ocasião do aparecimento do subtipo H5N1, que ainda não atendeu ao último: não passa de homem a homem. O risco de que o H5N1 adquira tal capacidade não está descartada, mas não é certa. O vírus pode se valer de dois mecanismos para conseguir a capacidade de transmissão entre humanos: 1) por rearranjo, no qual se processa uma troca de material genético entre os vírus (humano e o das aves) no curso de uma co-infecção de uma pessoa. 2) por mutação, processo mais gradual, no qual a capacidade do vírus de se unir às células humanas cresce ao longo de subseqüentes infecções humanas. Enquanto isto não ocorrer, as galinhas pagarão o pato…  Porque estudos mostraram que os vírus H5N1 dos surtos atuais, quando comparados aos vírus dos surtos de 1997 e 2003, tornaram-se progressivamente mais letais em galinhas infectadas experimentalmente. Investigadores das OMS, a partir de avaliações do surto na Turquia, atestam que não há evidências, até o momento, em nenhum lugar, de que o vírus tenha conseguido a capacidade de disseminar-se facilmente entre humanos. Portanto, pandemia de gripe das aves em humanos é penúria de alguma abundância.

Pandemia de influenza humana é outra ciosa. Há quem diga que Hipócrates fizera menção a ela, mas fiquemos com a documentação científica disponível na literatura idônea. Dr. Frederick Hayden, da Universidade da Virgínia, fez este compêndios das pandemias de influenza humana:

ANO

CEPA

GRAVIDADE

1870

H2N8

MODERADA

1889

H3N8

GRAVE

1918

H1N1

MUITO GRAVE

1957

H2N2

GRAVE

1968

H3N2

MODERADA

1977

H1N1

LEVE

Adaptado do quando 332.1, do Capítulo 332, do Tratado de Medicina Interna – Cecil

Daí em diante não surgiram novos subtipos antigênicos da influenza A. Em vez disso, os subtipos HH1N1 e H3N2 têm circulado alternadamente. Será que o H5N1, das galinhas, adquirirá capacidade de se transmitir entre pessoas, para figurar no contexto da influenza humana e produzir a primeira pandemia do século XXI?  Como os dados históricos apontam que as pandemias de influenza surgem de 3 a 4 vezes por século, em média, é possível. Mas isto é apenas possibilidade. De mim, eu acredito mais na possibilidade de que essa pandemia seja causada pelo H1N1, que tem mais experiência em catástrofes humanas.

A OMS enquadra o fenômeno atual na fase 3 do alerta pandêmico: “infecção humana com novo subtipo, mas sem transmissão entre pessoas”.

Qual é, enfim, a contabilidade de tanto alvoroço? 115 mortes em 3 anos, o que dá uma média de 28 mortes por ano, em todo o mundo. Há outra muito mais expressiva, que desgraçadamente não desperta nenhuma atenção: só no Brasil morrem 6.000 pessoas (não galinhas) anualmente de tuberculose. A OMS há uma década declarou em estado de emergência a tuberculose, que segundo projeção sua matará 2 milhões de pessoas anualmente em todo o mundo. Cada caso de tuberculose pode ser tratado eficazmente com apenas R$ 70,00! E a malária? A malária… 300 milhões de pessoas a contraem anualmente em todo o mundo e, destes, cerca de 2 milhões pagam, com a vida, tributo a ela! Por que será que possibilidade desperta mais interesse do que realidade? 28 mortes anuais da gripe das galinhas mais atenção do que os 2 milhões de mortes anuais da tuberculose ou 2 milhões de mortes da malaria? Não sei… Será que não sei?!

Disseram-me que se a pandemia vier (pandemias influenza, enquanto esse vírus não equipar seu sistema de replicação com controle de qualidade, virão certamente!) nocauteará a economia do mundo… Pararão as fábricas, superlotarão os hospitais, prosperarão as funerárias… Evidente que a gripe das aves merece, na exata medida do que é, atenção das autoridades sanitárias e dos pesquisadores. Foras disto, com todo o respeito que as outras opiniões merecem, só nos resta enterrar as vítimas da tuberculose e da malária e oferecer galinhas em holocausto.

Fernando Guedes

18/05/2006


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