Archive from março, 2012
mar 22, 2012 - Poligrafia    5 Comments

Assim cantou o grande cisne…

A globalização mata a noção de solidariedade, devolve o homem à condição primitiva do cada um por si e, como se voltássemos a ser animais da selva, reduz as noções de moralidade pública e particular a um quase nada. (Milton Santos)

Impossível ser geógrafo sem ter gosto pala paisagem. Enxergo tudo, de cima a baixo, para ver e entender. (Aziz Ab’Sáber)

A maior glória da minha vida foi simplesmente insistir no tombamento da Serra do Mar. (Aziz Ab’Sáber)

 

Neste mundo fútil de dubles, onde a cultura e o conhecimento bóiam na superfície da impostura, a Geografia brasileira – não é exagero dizer a mundial – empobreceu-se…  Primeiro, em 2001, perdeu Milton Santos; agora, em 16 de março, para dilatar ao máximo lacuna impreenchível, perdeu Aziz Nacib Ab’Sáber…

Milton Santos, de Brotas de Macaúbas, do sertão diamantino, é, por isto, mais meu… Sempre o admirei; sempre me encantou aquele sorriso franco que trazia na face negra, deixando transparecer sincera serenidade e grande sabedoria… Seu magnífico estudo sobre o Centro da Cidade do Salvador, apresentado à Universidade de Strasbourg, em 1958, como tese de doutoramento, é pérola de Geografia Urbana. Pierre Monbeig, notável geógrafo francês, que aqui lecionou, escreveu: “Bahia de Todos os Santos e de Todos os Poetas, Bahia, a Afro-Brasileira, teve seus historiadores e sociólogos. O professor Milton Santos quis ser o seu geógrafo, procurando compreender as relações complexas entre os homens e a natureza, entre o passado e o presente. Sem abandono do rigor científico, analisa as aparências para melhor compreender as almas”. Eis a geografia do espírito, de que Por uma outra globalização é o libelo contra essa idiotice que arrebanhou incautos mundo afora. Às perseguições, aos preconceitos, sempre respondeu com a grandeza do saber e da cultura, por isto venceu, por isto foi e continua sendo grande!

Aziz Ab’Sáber é de São Luiz do Paraitinga, interior de São Paulo, portanto conterrâneo de Oswaldo Cruz… Esse, cujo nome denuncia a ascendência árabe, atraiu a minha admiração por sua simplicidade límpida, clara, como as águas brancas do seu domínio natal: Paraitinga… Como a Milton, não tive a ventura de conhecê-lo pessoalmente, mas nunca os deixei de encontr, a ambos, na minha própria casa, na minha estante…

Aziz, professor titular do Departamento de Geografia da USP, pesquisou, através de rigorosos trabalhos de campo, praticamente todo o território brasileiro, porém, não se limitando ao campo estritamente técnico, com primorosa incursão nas humanidades, foi completo. Ouso dizer, adotando o conceito aristotélico de perfeição – tudo que possui início, meio e fim –, que foi perfeito. Suas páginas dOs Domínios de Natureza no Brasil são um primor de estilo e de ciência. O capítulo Caatingas: O Domínio dos Sertões Secos, para além de instruir, comove… É impossível lê-lo sem evocar os Sertões, de Euclídes da Cunha, obra máxima, jóia da literatura pátria. Há, nesse capítulo, sem aquelas dificuldades clássicas, lugares euclidianos. “Há um século, no recesso dos sertões de Canudos, Euclides da Cunha anotou dois termos utilizados pelos “matutos” para denominar “as quadras chuvosas e as secas”: o verde e o magrém. Provavelmente, não existe termo mais significativo do que o magrém para a longa estação seca, quando as árvores perdem folhas, os solos se ressecam e os rios perdem correnteza, enquanto o vento seco vem entranhado de bafos de quentura. O verde designa, com clareza, o rebrotar do mundo orgânico por meio da chegada das água que reativam a participação da luminosidade e da energia solar no domínio dos sertões. Infelizmente a expressão magrém caiu em desuso”. Sim, mestre Aziz, o magrém que hoje estiola a cultura, tirou de uso muitas outras coisas, nesta desgraçada nacionalidade onde se queima criminosamente a caatinga, para prosperar o sujo negócio do carvão. Relembremos, porque também isto está em desuso, Euclides: “As juremas, prediletas dos caboclos – o seu haxixe capitoso, fornecendo-lhe, grátis, inestimável beberagem, que os revigora depois das caminhadas longas, extinguindo-lhes as fadigas em momentos, feito um filtro mágico – derrama-se em sebes, impenetráveis tranqueiras disfarçadas em folhas diminutas; refrondam os marizeiros raros – misteriosas árvores que pressagiam a volta das chuvas e das épocas aneladas do verde e termo do magrém, – quando, em pleno flagelar da secas, lhes porejam na casca ressequida dos troncos algumas gotas d´água; reverdecem os angicos; lourejam os juás em moitas; e as baraúnas de flores em cachos, e os araticuns à ourela dos banhados… mas, destacando-se, esparsos pelas chapadas, ou no bolear dos cerros, os umbuzeiros, estrelando flores alvíssimas, abrolhando em folhas, que passam em fugitivos cambiantes de um verde pálido ao róseo vivo dos rebentos novos, atraem melhor o olhar, são a nota mais feliz do cenário deslumbrante”. Ah! Como deslumbra… Sabe o nordestino, por senti-lo, o significado do verde, que Euclides e Aziz souberam traduzir com maestria literária… Caminhar, ao alvorecer, por carreiros orvalhados, aspirando o perfume de humildes flores – douradas giestas e xaras olentes -, escutando o arrulhar da volúvel asa-branca, que sempre retorna ao primeiro ronco de trovão, é experiência inesquecível.

Sua luta em defesa da natureza, que principiou com a mobilização em prol dos remanescentes da Mata Atlântica, e que depois se expandiu, adquirindo, cada vez mais, caráter universal, não tinha o vezo do radicalismo estéril, ao contrário, era suavemente rigorosa, em face da segurança e retidão com que expunha suas idéias e convicções. Sua opinião contaria ao projeto de transposição do São Francisco, como fora açodadamente proposto, foi exposta, em artigos, com categoria e exemplar estilo. De um deles (A quem interessa a transposição do São Francisco?), eis remate: “O risco final é que, atravessando acidentes geográficos consideráveis, como a elevação da escarpa sul da Chapada do Araripe – com grande gasto de energia! –, a transposição acabe por significar apenas um canal tímido de água, de duvidosa validade econômica e interesse social, de grande custo, e que acabaria, sobretudo, por movimentar o mercado especulativo, da terra e da política. No fim, tudo apareceria como o movimento geral de transformar todo o espaço em mercadoria”.

O meu juízo sobre Aziz é movido pela admiração à distância, por isto quis ouvir a opinião de quem o conheceu de perto… A geógrafa Regina Coutinho, sua aluna na USP, deu-me este depoimento: “Quanto ao meu mestre Aziz, o que posso lhe contar, é que era grande, a começar pela sua altura imponente, e grande, pelo seu conhecimento e sabedoria. Nas aulas, era de uma clareza ímpar, e de uma simplicidade magistral, traduzida também na pronúncia das palavras, trazendo à tona, a sua origem do interior paulista: ” … e agora, crasse, vamos falar do Pranalto Paulista…”, e por aí seguia, nos enchendo de informação, e de orgulho, por sermos seus alunos. Ele era simplesmente Fantástico. Só convivi com ele um ano letivo, mas sempre cruzava com sua figura enorme e desajeitada pelos corredores do meu Instituto de Geografia, na querida e lembrada USP, e aí tinha a oportunidade de lhe perguntar algumas dúvidas, obtendo sempre a resposta, além de uma aula sobre o assunto. Depois, nos anos 90, o IBGE fazia, em comemoração à Semana do Meio Ambiente, lá no auditório da Petrobrás, uma série de palestras, com convidados escolhidos a dedo, e meu professor foi um dos palestrantes, tendo sido aplaudidíssimo pela platéia. Foi a última vez que o encontrei. Sinto imensamente a sua morte, mas sei que ele está no Olimpo, a ocupar, com certeza, uma cadeira dedicada a um deus brilhante, que veio somar ao conhecimento da humanidade, toda a sua bagagem intelectual. Infelizmente, será difícil alguém ocupar o seu lugar, e engrandecer a nossa já tão combalida Geografia”.

Esse deus brilhante, que lançou mil luzes, virou “fazedor” de bibliotecas, e saía a distribuir livros nas comunidades carentes… Certa vez, na penitenciária feminina do Butantã, aonde foi em visita oferecer livros, comoveu às lágrimas aquelas almas empedernidas, que ao próprio mal se habitua… Livros à mão cheia, porque, como ele mesmo disse, “a solidão é perigosa”!

Entre as funções que exerceu, com competência e eficácia, destaca-se a presidência da SBPC, cuja sede em São Paulo visitou recentemente, pouco ante de sua morte, para oferecer um DVD do conjunto de sua vasta obra. Antes de entregá-lo à secretária, escreveu mais que uma dedicatória… Compôs ali mesmo, em poucas linhas, qual cisne que presente a morte próxima, seu canto derradeiro: “Tenho o grande prazer de enviar para os amigos e colegas da Universidade o presente DVD que contém um conjunto de trabalhos geográficos e de planejamento elaborados entre 1946-2010. Tratando-se de estudos predominantemente geográficos, eu gostaria que tal DVD seja levado ao conhecimento dos especialistas em geografia física e humana da universidade”. Assim cantou o grande cisne…

Fernando Guedes

18/3/2012

mar 8, 2012 - Poesia    6 Comments

Mulher

 
 
Tua voz, teu olhar, teu ar dolente
Toda a delicadeza ideal revela
E de sonhos e lágrimas estrela
O meu ser comovido e penitente.
 
(Madona da Tristeza, Cruz e Sousa)

 

 

Tem um quê aparente de fragilidade…

Grácil e sensual qual maja nua de Goya!

É meu ideal, meu pensar sem maldade,

Da minha fortuna a mais rara jóia…

Ó formas alabastrinas! Dessa boca

Febril risos, afagos e carícias almejo.

Quando a idealizo de desejo louca,

A vida daria pela ventura de um beijo…

Mas foge vaporosa, como anjo em arremesso…

De lá, do etéreo longe do pensamento,

Acena-me indiferente, fingindo desapreço.

Depois, com ar inocente de madona, tímida,

Para o meu cismar volta quando quer…

Entre beijos e carícias entrega-se Mulher.

 

Fernando Guedes

Pela passagem do Dia Internacional da Mulher

8/3/2012


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