maio 4, 2009 - Poligrafia    No Comments

Dr. Osvaldo, que conheço bem…

No nosso último encontro, há uma semana, na casa de Magnavita, Paulo nos falou da comemoração do centenário de Dr. Osvaldo Devay, que a família está preparando. Para mim, perguntou-me: – Você, que é um admirador de Dr. Devay, por que não escreve alguma coisa sobre ele?

Seja, nesta sintética escritura, ele louvado! Conheci-o já tarde, e tive somente o privilégio de poucos encontros pessoais com ele. Ficou-me, dessa fugaz relação, uma imagem admirável, que o seu sorriso discreto, como são os sorrisos francos, gravou na memória da minha lembrança, na consciência do meu afeto. Continuo, contudo, a encontrá-lo, constantemente, nas páginas de sua obra literária, que leio constantemente, alumiada pela claridade do rastro de luz que nos deixou… Este, o polígrafo, é o que conheço bem…

A minha admiração não decorre da intimidade do conhecimento, porque, como já disse, o conheci tarde e tivemos raros encontros pessoais. Decorre da coincidência de amores comuns: Castro Alves, o maior de todos, Camões, e o que nos une aos outros: Afrânio Peixoto. O estilo literário de Dr. Devay, pela elegância do vocabulário, pela nobreza das frases, pela síntese, pelo gênero da poligrafia, é o de Afrânio, que eu tanto admiro e sigo. Se este disse, no Breviário da Bahia, que Rui, na oratória, seguiu Vieira, que seguiu Cícero, ouso dizer, para engrandecê-lo, ainda mais, que Dr. Devay, na poligrafia, seguiu Afrânio. É escola!

O pequenino prefácio do seu Camões lembra, com clareza, o dos Ensaios Camonianos, de Afrânio. No seu Noturno, que acho que fora intencionalmente escrito, para ser lido com Chopin em fundo musical, encontro, no capítulo exta-índice, Iayá, o seu auto-retrato, uma oração escrita com pena transcendente… “Sinto, e me pesa, que ela começa a desviver”… O emprego deste verbo, com tamanha elegância de estilo, é raro na literatura brasileira, apenas nestes dois lugares o encontro igual: “Organização desfibrada de adversários que desviviam há três meses” (EUCLIDES DA CUNHA) e “A hera dos castos afetos desvive, murcha e esfolha-se” (RUI). Só ao amoroso é concedido desprendimento desta grandeza, que é um voto: “Não me arrebate mais nunca outra alma da minha alma. Antes disso, me extinga a mim a vida”. Deus, ao que sei, não ignora voto de alma fiel, o acatou, colocando, no seu caminho, como diria Fagundes Varela, a soberana dos sinistros impérios de além-mundo…

Encontro, ainda no Noturno, outro capítulo que a mim me fala de perto: Viagens na Minha Terra. Declaração de amor a Portugal de Afrânio Peixoto, que o homenageado tanto admirava, a ele, Afrânio, e ao livro monumental, que são visões fugidias do espaço e do tempo. Ele o declara:

Ao autor devoto, desde jovem, comovida e afetiva admiração; quanto a Portugal, sinto que faz vivas em mim, entranhadas, remotas e atávicas saudades”.

Declara mais, que pretendia conhecer Portugal, incitado por essas saudades atávicas e pela leitura reiterada de Viagens na Minha Terra, a este, de Afrânio, quanto o de mesmo título, de Almeida Garret, assim:

Os dois livros me valeram balsâmico toque em ferida aberta, pois mantenho, velhos e intensos, dois propósitos de realização ainda protraída, que, oxalá não evanesçam como sonhos vernais que hibernam…”

Dr. Devay, contudo, não teve a oportunidade de matar as suas saudades… Este sentimento, que o homenageado experimentava, experimentei-o também, mas tive a ventura de conhecer Portugal, depois de ter lido e relido Viagens na Minha Terra… Como é bonito Portugal, depois dessa leitura!

O Capítulo seguinte, Parábolas, também livro de Afrânio Peixoto, pequenos trechos de filosofia e reflexão; de conceitos morais e humor, são, em Dr. Devay, os Pedaços, que, se fossem todos conservados e editados, dariam, penso, dois volumes, cujos correspondentes, na obra de Afrânio, são: o já citado e É.

Há tanto Afrânio em sua obra… Seu Camões diz que os Ensaios Camonianos, do outro, trazem inesgotável filão de ouro… Seu Castro Alves fala da Vida Efêmera e Ardente de Castro Alves, do outro, e no Ofertório, do seu, lê-se este primor de oferenda:

E também assentem à mesa das oblatas do

Pobre, os nomes baianos, aureolados, de Pedro

Calmon e Afrânio Peixoto, com, ainda,

destaque especial de dois monumentos da

Bahia: O Livro das Horas, e Breviário da Bahia.

A beleza está precisamente em considerar monumentos da Bahia o Breviário da Bahia e O Livro de Horas, os dois últimos filhos de Afrânio, dedicados à Bahia, para serem, como disse o homenageado, livros de cabeceira dos brasileiros, notadamente dos baianos.

Para ser fiel ao estilo, convém que eu procure encerrar esta homenagem, com faria Afrânio Peixoto. No Livro de Horas, disse ele, sobre Manoel Vitorio: Deixou um traço de luz, que perdura, como o dos meteoros, que deslumbram ainda depois da passagem. Esta é a imagem que me ficou de Dr. Devay, só que a passagem, para proveito da Bahia, dos colegas, dos amigos, dos familiares, foi mais lenta, como a dos cometas, deixando-nos deslumbrante rastro luminoso, que perdurará, sempre!

Fernando Guedes

4/5/2009

ago 3, 2005 - Poligrafia    No Comments

Até agora!

O que afirma o deputado Roberto Jerfferson, contesta do deputado José Dirceu, que é contestado, no que afirma, por Jerfferson. Isto é, está a nação diante de uma mentira. Mas, que há de novo em mentir-se nesta desgraçada nacionalidade? Absolutamente nada! Esta República, que foi fruto de uma mentira, degradou-se nos descaminhos da inverdade, e esta tem sido, há mais de um século, a prática dos nossos políticos.

Tudo, exatamente tudo, nesta República é mentira, quem o afirmou foi um insuspeito republicano de primeira hora, Rui Barbosa, em 1919. Disse a águia de Haia, ao se referir à prática republicana brasileira: “Mentira nas promessas. Mentira nos programas. Mentira nos projetos. Mentira nos progressos. Mentira nas reformas. Mentira nas convicções. Mentira nas transmutações. Mentira nas soluções. Mentira nos homens, nos atos e nas coisas. Mentira no rosto, na voz, na postura, no gesto, na palavra, na escrita. Mentira nos partidos, nas coligações e nos blocos. Mentira dos caudilhos aos seus apaniguados, mentira dos seus apaniguados aos caudilhos, mentira dos caudilhos e apaniguados à Nação. Mentira nas instituições. Mentira nas eleições. Mentira nas apurações. Mentira nas mensagens. Mentira nos relatórios. Mentira nos inquéritos. Mentira nos concursos. Mentira nas embaixadas. Mentiras nas candidaturas. Mentira nas garantias. Mentira nas responsabilidades. Mentira nos desmentidos. Mentira geral. O monopólio da mentira. Uma impregnação tal das consciências pela mentira, que se acaba por se não discernir a mentira da verdade, que os contaminados acabam por mentir a si mesmos, e os indenes, ao cabo, muitas vezes não sabem se estão, ou não estão mentindo. Um ambiente, em suma, de mentiraria, que, depois de ter iludido ou desesperado os contemporâneos, corre o risco de lograr ou desesperar os vindouros, a posteridade, a história, no exame de uma época, em que, à força de se intrujarem uns aos outros, os políticos, afinal, se encontram burlados pelas suas próprias burlas, e colhidos nas malhas da sua própria intrujice, como é precisamente agora o caso”. Será preciso dizer mais uma palavra?! Talvez: mentira de Jefferson a Dirceu, mentira de Dirceu a Jefferson. Mentira de Lula à nação, mentira da nação a Lula… Mas, estou dizendo a mesma coisa! Sim, eis a nossa República: ontem e hoje, que se resume nestas frases proferidas da tribuna do Senado Federal, por Rui Barbosa, na sessão de 17 de dezembro de 1914:

“A opinião pública está inquieta por ver que tem havido até agora no seio do governo elementos interessados em obstar a responsabilidade dos culpados.”

“Alguma coisa, porém, há de que todos nós sabemos; é que os responsáveis por esses crimes estão vivos; é de que eles se acham dentro do território do nosso País, sujeitos à ação das nossas leis; é que os documentos comprobatórios desses crimes se acham no arquivo público, nas secretarias, nas mãos do Governo Federal; é que a justiça não se instaurou, porque o Governo Federal não permitiu, porque o Governo Federal abafou esses documentos, porque o Governo Federal era até ontem cúmplice nesses crimes.”

“A falta de justiça é o grande mal da nossa terra, o mal dos males, a origem de todas as nossas infelicidades, a fonte de todo nosso descrédito, é a miséria suprema desta pobre nação. A sua grande vergonha diante o estrangeiro, é aquilo que nos afasta os homens, os auxílios, os capitais”.

“A injustiça desanima o trabalho, a honestidade, o bem; cresta em flor os espíritos dos moços, semeia no coração das gerações que vem nascendo a semente da podridão, habitua os homens a não acreditar senão na estrela, na fortuna, no acaso, na loteria da sorte, promove a desonestidade, promove a venalidade, promove a relaxação, insufla a cortesania, a baixeza, sob todas as suas formas.”

“De tanto ver triunfar as nulidades, de tanto ver prosperar a desonra, de tanto ver crescer a injustiça, de tanto ver agigantarem-se os poderes nas mãos dos maus, o homem chega a desanimar-se da virtude, rir-se da honra, a ter vergonha de ser honesto. Essa foi a obra da República nos últimos anos.” Se ele fosse vivo diria: até agora!

Fernando Guedes

Salvador, 3/8/2005

maio 30, 2005 - Poligrafia    2 Comments

Tabaco: réu de morte ou vítima da hipocrisia humana?

“Fumar es un placer genial,  sensual…

Dame el humo de tu boca,

dame que en mí passión provoca…”

Do tango Fumando Espero, de J. Viladomat Masanas

“Pobre moreno
Que de tarde no sereno
Espera a lua no terreiro
Tendo o cigarro por companheiro.”

Do samba-canção No rancho Fundo, poema de Lamartine Babo e música de Ary Barroso.

No dia em que o homem tiver juízo se interessará mais em escrever a história das coisas, do que a sua própria história, que é menos interessante. Se o humano, mesmo criminoso, merece defesa, por que não há de merecer a coisa perigosa? Eu acho que merece, e aqui faço a defesa do tabaco, para que ele possa ser condenado justamente.

“A história da medicina tem sido uma constante substituição de mentiras por falácias”, e uma das falácias comum nestes tempos atuais é a execração de certos hábitos, sem ao menos considerar as suas virtudes. Que o tabaco faz mal à saúde, não é novidade. Está relacionado com o câncer de pulmão, com a bronquite crônica, com infarto do coração, do cérebro, etc., em muitas pessoas. Se a Veja o ensina, não será preciso mais nada, neste mundo de nulidades… Mas, o que não se ensina, e acho até que não há necessidade de se ensinar, é que o tabaco não causa nada disso em muitas outras pessoas. O complicado mecanismo fisiopatológico de câncer, falo do câncer porque, não fora ele, a situação seria diversa, não está de todo esclarecido; portanto o tabaco surge, neste canário, através de deduções aproximadas, de relação de causa e efeito. A natureza histológica do carcinoma de pulmão do fumante é a mesma do carcinoma de pulmão do não fumante, penso. São exatamente a mesma coisa! Mas os estatísticos demonstram, contudo, que quem fuma tem maior chance de desenvolver o câncer de pulmão. Não vamos, por precaução, duvidar deles, e se esqueçam, por favor, que, segundo eles mesmos, todos os brasileiros comem, em média, um frango por semana… O produto da combustão do tabaco, aspirado, faz mal, não há dúvida!

Afirmar, contudo, que o hábito de fumar o tabaco não traz nenhum benefício, é o outro exagero da questão. Ninguém meteria fumaça no peito se isto não lhe causasse algum bem-estar, algum prazer, que é o benefício perseguido pelo fumante; é, em suma, o que lhe basta. Mas isto já não se respeita, porque a sociedade autocraticamente decidiu que ninguém deve fumar, transformando o fumante numa espécie de pária, para o qual olhares desabonadores e resmungos dissimulados são o vale de isolamento e de segregação. É o anátema das minorias…

Se o tabaco é um problema mundial de saúde pública, como demonstraram os representantes de numerosas nações, em recente assembléia da ONU, que aprovaram uma resolução condenando a incauta solanácea, o Brasil tem muito a ver com isto, porque o tabaco difundiu-se pelo mundo a partir  daqui. Antes de 1556, relata Damião de Góis, fora a planta levada do Brasil a Portugal, por Luís de Góis. André Thevet, em 1556, diz que, do Brasil, a levara a Paris, a Catarina de Médicis, antes mesmo de Jean Nicot, que, só em 1559, de Lisboa levara também a Paris, cultivando-a no jardim real, razão porque Lineu lhe daria o nome de Nicotiana tabacum, donde nicotina, etc. Já, em 1556, Hans Staden, em seu livro Viagem ao Brasil, publicou gravuras de índios fumando, em conselho, enormes trabucos de folha de palma, cheias de folhas secas de tabaco, precursão dos nossos modernos charutos, foi o que, no Breviário da Bahia, escreveu Afrânio Peixoto.

“Os nossos antepassados chamavam-lhe pitum, donde pitar, pito, pitada, que é a prise francesa, de tabaco torrado, “tabaco pisado”, tabaco em pó (rapé ou torrado), que se acondiciona em tabaqueira, boceta ou cornimboque, para ser aspirado, pelo nariz. Esse hábito resultou nos lindos lenços chitados, de Alcobaça, em Portugal, próprios para limpar os dedos e o nariz, do tabaco”.

“Os nossos antigos diziam “beber o fumo” por “tragar” a fumaça, como se diz hoje, como ainda também se diz “mascar” fumo, isto é, pô-lo em fragmentos na boca, deglutindo a saliva, que o dissolve. Ainda havia, e há, os que esfregam os dentes com um troço de fumo de corda, para os assear, não sem engolir o que resulta dessa operação, nem sempre limpa”.

É, também, brasileira a acepção pudenda de tabaco, que, por contido na boceta, de inspiração erótica, que, pela troca da primeira vogal, já emprestara nome à genitália feminina, fixando, depois, a significação chula do próprio conteúdo: “tabaco” é essa mesma genitália.  Em Bangüê, de José Lins do Rego, lê-se: “Francelino tinha passado nos peitos a menina de Zé Gonçalo. Ela dera o tabaco.” Daí, “tabaco da Bahia”, que não é o bom fumo do recôncavo, senão a boa genitália das baianas. Somos espirituosos até nessas coisas, que fazer!?

O tabaco sempre dividiu opiniões: defensores e detratores, desde muito, se debateram acerca de benefício e de malefício. Desde logo a Igreja o considerou o único dos modernos pecados mortais, que devia ser ajuntado à lista dos tradicionais. O Padre Manoel da Nóbrega, já em 1550, se abstinha, como os outros jesuítas, “por não se conformarem com os infiéis que muito o apreciam”. O nosso primeiro Bispo, Dom Pero Fernandes Sardinha excomungou ao donatário do Espírito Santo, Vasco Fernandes Coutinho, por fumar. O papa Urbano VIII estenderia a excomunhão aos religiosos que o fizessem, em 1624, e assim por diante… mais uma vez Afrânio.

O tabaco, queiramos ou não, tem a sua história, que não é somenos, portanto tenham cuidado com essas campanhas, que são mais difamatórias, que educativas. Apontem o crime, sem denegrir o criminoso, porque até o criminoso tem o seu direito protetor.

Num cartaz, reclamo da atual campanha contra o tabaco, a fabricante do cigarro é uma bruxa. Isso não só é de um mau gosto terrível, como um insulto. Já que não se fabricam mais cigarros manualmente, senão em modernas máquinas, que produzem milhares por minuto. De manual restaram os charutos, que são fabricados, via de regra, por mulheres, que com a sua delicadeza manipulam as folhas do tabaco, esticando-as nas suas próprias coxas, para o deleite dos apreciadores do seu produto (Havana, Montecristo, Dona Flor, etc.). Baianas ou cubanas, belas sempre, elas nada têm de bruxa. Aliás, essas campanhas, por não respeitarem as individualidades, por ignorarem a sociologia do tabaco, a sua história, já estão exorbitando do razoável: estão cada vez mais insuportáveis…

Fernando Guedes

30/05/2003

maio 7, 2005 - Poligrafia    No Comments

Tanatoética, ou a Ética da meta

“Minha vida começou pela extinção. É estranho, mas é assim. Desde os primeiros mminutos em que tive consciência de mim, senti que me apagava.”

Ivan Gontcharov

A verdadeira Filosofia é meditar sobre a morte

Dos azulejos do Convento de São Francisco – Salvador – Bahia (1743 – 1746)

Não hei de lhes apresentar um ensaio filosófico ou, muito menos, um texto de exegese ontológica. Muito longe de ser uma tese. Escrevi, com a precariedade da minha pena, linhas despretensiosas sobre o que penso acerca da Ética, para atender não à minha vaidade de aprendiz de filósofo, mas à gentil provocação de uma amiga, que insiste em compreender-me, e, assim, encontra, nas minhas idéias, alguma utilidade intelectual. A sugestão foi para que eu falasse de filosofia, ética e medicina, o que, de certa forma, soa-me como uma excitante provocação. Ora, partidário do time de Bernard Shaw, Voltaire, Molière e Gordon, como bem o sabe minha amiga, acho que a medicina é um culto a reformar, mas não me acho à altura de ser-lhe o reformador, nem sinto que eu tenha necessidade de fazê-lo. Como, por outro lado, não tenho a pretensão de laçar diatribes sobre a crença de ninguém, falarei dela apenas o suficiente para construir o elo que a liga aos demais temas. Falar de ética é filosofar; portanto, filosofo falando de ética.

Com o modelito em moda, a bioética, – convém lembrar Afrânio Peixoto: os médicos e as mulheres são as criaturas mais sujeitas à moda, esse tirânico fenômeno sociológico – que já foi argüida de “ponte para o futuro”, que eu não alimento a quimera de cruzar, posto que, na minha inexorável sucessão de agoras, não me hei de importar, porque me bastam as preocupações do presente.

Tudo o que sei sobre ela só me fez agravar a certeza de que o melhor que possa fazer, neste mundo em que os “Crítons” vivem a imolar galos em honra de Esculápio, em total contradição com os ensinamentos de Sócrates, é mergulhar nas reconfortantes águas de uma fonte chamada Monteigne, e especular sobre a ética da meta, educando-me a morrer. Portanto, já que o Dr. Van Potter engendrou o termo bioética, pensando que estava sendo original, eu, rejeitando o senso comum, e totalmente despojado do complexo de inferioridade, fico com a ilusão que cunhei tanatoética, que, se não é mais importante, é, pelo menos, por consernir à morte, mais definitivo.

À guisa de conceito

Nunca se falou tanto de ética, como nos tempos atuais, e nunca se deturpou tanto o conceito de ética, a ponto de ter proliferado, principalmente no mundo empresarial, essa contradição insólita: os redatores de “códigos de ética”. Não tenho conhecimento de nenhum filósofo que se desse ao despautério de escrever “código de ética”, até porque o filósofo, ainda que estravagante, pensa… Ética é disciplina teórica, capítulo da filosofia, que, em compêndio, trata do estudo da moral. Deduzimos daí que “os problemas éticos caracterizam-se pela sua generalidade e isto os distingue dos problemas morais da vida cotidiana, que são os que se nos apresentam nas situações concretas”. Não há dúvida de que a ética pode colaborar para fundamentar ou justificar certo padrão de comportamento moral, revelando certo caráter prático, o que explica porque se tentou ver nela uma disciplina normativa, cuja função primordial seria indicar o comportamento melhor do ponto de vista moral. Eis a origem do esquecimento do caráter propriamente teórico da ética, que aqui, nestas parcas linhas, se pretende relembrar: “a função fundamental da ética é a mesma de toda teoria: explicar, esclarecer ou investigar uma determinada realidade, elaborando os conceitos correspondentes”.  Ninguém ignora que a realidade moral varia com o curso da história, com a evolução da sociedade, e, com ela, variam os seus princípios e as suas normas. Pode-se negar, por acaso, que em determinada época histórica a escravatura foi moralmente aceita entre nós? Que a economia desta nação sustentava-se nela? Dominava uma moral servil, em que até os próprios escravos, se deixando influenciar por ela, consideravam a si próprios como peças. Assim, quem haveria de dizer que manter uma senzala era antiético? Fluiu o tempo, pelo seu inexorável declive das épocas, e, pouco a pouco, foi-se formando, na consciência dos escravos, a idéia de liberdade, e chegaram, em muitos casos, a deflagrar memoráveis lutas contra seus agressores, contribuindo para a transformação da consciência  social, que passou a ver, na escravidão, uma ignomínia, com a qual já não se podia mais conviver, desembocando na moral dos homens livres. É que, com a história, mudou a realidade moral, que, por sua vez, implicou o ajustamento das normas éticas correspondentes. A ética da escravatura já não explicava a moral da abolição. Que a abolição foi equivocada nos seus desdobramentos, deixando os escravos ao abandono, com cartas de alforria nas mãos, quando já não tinham sequer força para prover o próprio sustento, é outra coisa, que suscita sua específica especulação.

Não confundamos ética com moral, e que fique claro que a ética não cria a moral. “O valor da ética como teoria está naquilo que explica, e não no fato de prescrever ou recomendar com vista à ação em situações concretas”. É certo que toda moral supõe princípios, normas ou regras de comportamento, mas não é a ética que os estabelece, senão procurar determinar-lhes a essência, investigar-lhes a origem, desvendar a natureza dos juízos morais, teorizar sobre as circunstâncias da moral vigente numa determinada sociedade. A moral, por seu turno, não é ciência, mas objeto da ciência, que a estuda e investiga, que, em última análise, é a ética. Portanto, não sendo a ética a moral, ela não pode ser reduzida, como muitos o pretendem, com ridículos códigos, a um conjunto de normas e prescrições. Somente quero dizer que a relação da ética com a moral se esclarece no relacionamento de uma ciência específica e seu objeto. Não há aqui se apelar para a similitude etimologia dos termos: moral e ética – do latim mos e do grego ethos – , porque o esquecimento etimológico, fenômeno comuníssimo em todas os idiomas,  já cuidou de separá-los, há muito.

Exercitando a ética

Qual a natureza da obrigação moral? De onde ela provém?  Responder a estas questões é exercitar a ética. Marcel Conche, nesse passo, assim escreveu: por que me sinto obrigado a fazer o que contraria minha propensão natural a viver para mim e se choca com meu desejo de compor as ocupações de meus dias de acordo com meu gosto ou meu prazer? De alguns anos para cá, diz ele, estou sujeito a viver constantemente ao lado de minha esposa doente. Estou sujeito, ou melhor: eu me sujeitei e me sujeito, responde o filósofo, pois não poderia aceitar que ela vá para uma clínica ou um asilo para pessoas doentes ou idosas. Se aceitasse isso, justifica, eu me sentiria em falta com ela. Sinto-me obrigado a fazer que ela fique o melhor possível acompanhada e ajudada. No entanto, vários desejos e projetos que eu teria são contrariados com isso. De onde vem, pois, esse sentimento de obrigação, tão forte que arrasta até mesmo as propensões pessoais e egoístas?

Dirão que amo minha mulher ou que seu estado de fraqueza, de dependência, de impotência, me inspira compaixão. Ele não contesta nenhuma dessas afirmações e admite que, nesse exemplo de devoção, é difícil isolar o sentimento de obrigação dos sentimentos conexos de amor e piedade.

Eis a obrigação de fazer, a obrigação moral, que os estóicos a entenderam exemplarmente: “podemos fazer aquilo a que nos estimamos obrigados com total indiferença afetiva e até sem desejo”.

O médico dispensa cuidados a seu paciente é esperando que tais cuidados vão ajudá-lo, senão na cura, pelo menos a ter uma razoável qualidade de vida durante a sua doença. Nenhum médico, ainda que não desejasse que o paciente vivesse, deixaria de fazer o que deve ser feito, sem amor e sem piedade. A moral é indiferente ao amor, à piedade e ao desejo do bem. Ela, nesse sentido, é auto-suficiente, prescinde de qualquer sentimento, que não seja a sua própria obrigação.

Acabei de dizer, ut retro, que a obrigação moral brota do recesso do ser, por causa de uma convicção interior e não por uma simples conformidade exterior, impessoal e forçada, como ocorre com o comportamento jurídico e no contrato social. A liberdade de escolha é condição da obrigação moral. Não é por me sentir obrigado a fazer isto ou aquilo, que vou fazê-lo, nem por sentir a obrigação de não fazer o que me tenta que não vou fazer. A obrigação não acarreta o ato dela mesma e sem que eu tenha de querê-lo. Para que aquilo a que me sinto obrigado se consume, é preciso que a minha vontade admita a obrigação.

Deparamo-nos, neste mundo de superficialidades, com a constante confusão conceitual entre obrigação moral e obrigação social. A pressão da sociedade sobre o indivíduo não suscita senão uma obrigação social: “como respeitar superiores, observar os usos, como responder a uma carta, agradecer por um serviço prestado, felicitar por ocasião de acontecimento feliz, presentear, acompanhar enterro de um próximo, expressar condolências, cumprimentar, estender a mão em cortesia etc.,” que nada tem a ver com a obrigação moral. Este exemplo de Marcel Conche esclarece a diferença: Quando os prussianos invadiram a cidade de Orléans, em dezembro de 1870, soldados inimigos bateram à porta de uma francesa e lhe confiaram um dos seus feridos. Ao despir o ferido, para lhe fazer o necessário curativo, viu uma corrente de relógio presa a uma das botoeiras da túnica. Retirou o relógio e se deparou com a lembrança que dera a seu filho, que combatia entre os franco-atiradores, e, tomada por horror e desespero, desmaiou. Ela cuidava do assassino do seu filho! Recobrada a consciência, irrompeu em soluços e, corajosamente, termina o curativo começado. Quem há de dizer que o curativo que aquela mãe fez no assassino do seu próprio filho foi motivado por uma obrigação social? É insofismável que aquele curativo foi terminado em decorrência de uma exigência de outra ordem, que, em última análise, é a obrigação moral, que àquela francesa se apresentou como um comportamento livre e obrigatório.

Espero ter deixado claro, até aqui, que a obrigação moral pressupõe necessariamente uma livre escolha, logo, quando o agente se vê privado da livre escolha, não há que exigir-se dele uma obrigação moral. Convém refletir, contudo, que nem toda possibilidade de se escolher livremente encerra, em si mesma, uma significação moral. Escolher eu entre assistir a um filme ou ir à praia evidencia simplesmente a minha liberdade de escolher, que não se relaciona com uma obrigação moral, porque nenhuma sanção moral me pode ser imposta pelo fato de ter preferido o cinema à praia; a praia ao cinema. Porém, se minha escolha recai entre ir ao cinema ou visitar um paciente ao qual prometi assistir na mesma hora, a minha escolha é condição necessária inescusável para o cumprimento da obrigação moral assumida.

Estar-se obrigado moralmente a cumprir uma promessa que se pode cumprir, dado que nenhuma causa exterior impeditiva obstaculize a ação do agente, suscita a obrigação moral. A aparente limitação da liberdade, em ter que escolher cumprir a promessa que fiz a meu paciente é somente aparência, por que sou eu quem escolhe decidir limitá-la, para afirmar a liberdade indispensável que se possa imputar-me uma obrigação moral, que estaria excluída se a limitação fosse imposta à minha revelia, de fora.

Sobre as teorias da obrigação moral

Sou tentado a não fugir à monomania de classificar as coisas, mas, se o faço, é apenas para tornar a idéia mais fácil de ser assimilada, e não para colocar limite ao pensamento.

Classificam-se essas teorias em dois grupos: deontológicas e teleológicas. Entende-se por deontológica (de deón = dever) aquela teoria que não condiciona a obrigatoriedade de uma ação às suas próprias conseqüências. Ao contrário, é teleológica (de télos = fim) aquela cuja obrigatoriedade de uma ação deflui exclusivamente de suas conseqüências. Para melhor demonstrar a diferença entre ambas, valho-me de um sugestivo exemplo do mexicano Adolfo Vázquez, a quem abro aspas: “suponhamos que um doente grave, confiando na minha amizade, pergunta-me sobre o seu real estado, dado que, segundo perece, os médicos e os familiares lhe ocultam a verdade: o que devo fazer neste caso? Enganá-lo ou dizer-lhe a verdade? De acordo com a doutrina deontológica da obrigação moral, devo dizer-lhe a verdade, sejam quais forem as conseqüências: mas, se me atenho à teoria teleológica, devo enganá-lo tendo em vista as conseqüências negativas que podem resultar, para o doente, do conhecimento do seu verdadeiro estado”.

Sem embargo de não submeter a deontologia a obrigatoriedade do ato moral às suas conseqüências, como já o disse, é possível identificar, neste postulado, certo relativismo, que se pode deduzir da visão sartreana do ato moral. Partindo-se do princípio de que a liberdade é a fonte de valores por excelência, admite essa filosofia que a conseqüência do ato pode adquirir caráter deontológico. Assim, exemplificando, entre duas possibilidades de ação que se nos oferecem, o fundamental é comprometer-se com uma delas. Ora, comprometer-se é, em suma, escolher, e o ato de escolher deveria estar condicionado a uma norma geral orientadora, o que nos levaria a um paradoxo, que o existencialismo justifica com o postulado da importância do grau de liberdade, com que se faz a escolha. Assim, admite a teoria deontológica do ato.

As teorias deontológicas da norma, onde se insere a “ética” profissional – que é normativa -, determinam que os atos morais são orientados por normas que devem ser cumpridas independentemente das suas conseqüências. Sem contar os filósofos contemporâneos que se dedicaram ao estudo dessas teorias, é na Crítica da razão prática, de Kant, que encontramos a expressão clássica dessa filosofia.

As teorias teleológicas dividem-se em: utilitarismo e egoísmo ético; ambas têm em comum o princípio de relacionar a obrigação moral a que estamos sujeitos às conseqüências de nossas ação. Se ao praticar um ato o fazemos levando em consideração o nosso benefício pessoal, estamos diante da teoria do egoísmo ético; ao contrário, se consideramos o benefício dos outros, nos deparamos com o utilitarismo, em sua forma vária.

Tomo o exemplo da aplicação do Art. 120, do Código de Ética Médica, que eu mesmo levantei no passado, quando éramos, os médicos do trabalho, constrangidos a realizar perícias para conceder ou negar benefícios previdenciários aos empregados da companhia onde trabalhávamos. Não há dúvida que se trata de uma norma deontológica, portanto, o seu cumprimento independe das conseqüências do ato a que ela se ajusta. Mas, o que esta norma realmente proíbe ao médico? “Ser perito de paciente seu, de pessoas de sua família ou de qualquer pessoa com a qual tenha relações capazes de influir em seu trabalho”. Como é sabido, a despeito da clareza desta redação, foi preciso uma resolução do Conselho Federal, para confirmá-la, o que causou grande alvoroço no meio dos médicos do trabalho que reputam a medicina do trabalho uma especialidade sem pacientes. Ainda que a medicina do trabalho fosse essa estranha especialidade sem pacientes, mesmo assim a proibição os alcançaria, a esses médicos do trabalho, pois não há negar que o empregado da empresa onde trabalham, se não é paciente, certamente está entre: “qualquer pessoa com a qual tenham relações capazes de influir…” Negar isto implica renegar o próprio conceito de generalização.

Como se pode deduzir, estamos diante de um problema prático-moral e não de uma questão teórico-ética; portanto, será inútil recorrer à Ética para resolvê-lo. A Ética não cria a Moral, estuda-a com os seus postulados teóricos, somente isto. Por outro lado, não se pode ignorar que a Moral mantém com a sociedade uma certa “promiscuidade” evolutiva, que a torna mutável, o que não foi considerado quando se discutiu a aplicação do Art. 120.

A celeuma que então se criou em torno dessa questão se deveu exclusivamente ao fato de se dar a uma norma deontológica interpretação teleológica, na tentativa de ajustá-la a uma situação concreta, não se cogitando de buscar, na evolução da moral, a correta solução ao problema. Ora, a moral sempre reflete a sociedade que lhe é contemporânea, não se cristalizando, imutável, no tempo.

Se é certo que a moral evoluí, também é correto que a ética a ela se deva ajustar. O exercício da medicina na atualidade não pode ser orientado por normas deontológicas que refletem uma moral que já não existe, atropelada pela evolução das relações sociais e pelo desenvolvimento das ciências que a apoiam.

Ética da meta

Trago para o princípio desta reflexão as palavras com as quais Françoise Dastur finalizou o seu interessante ensaio sobre a finitude: ‘‘É essa irresponsabilidade e essa amoralidade do jogo cósmico do qual não há expiação nem desejável nem possível, e essa realeza da finitude que são totalmente ignoradas ali onde, como nas sociedades industrializadas, isto é, hoje em dia numa parte cada vez maior do planeta terra, a morte caiu no esquecimento”. A morte, senhores, é, na visão de Schoprnhauer, propiamente o gênio inspirador, ou a musa da filosofia, portanto, meditemos sobre ela com este exemplo: um empregado vivendo circustâncias aflitivas cometera falta grave, ao transferir, para a sua conta bancária, parte dos salários de outros empregados, tendo, para isto, conseguido, por meio escuso, a senha de sistema de pagamento… Estava sendo submetido a uma comissão de inquérito administrativo, e, dizia-se, seria certamente demitido. Isto é: a desgraça atarindo, para si, uma desgraça ainda maior. Quando fora ouvido numa sexta-feira, era um mau empregado, que devia pagar pelo seu erro. Na segunda-feira seguinte, com a comoção do seu suicídio, já era um coitado, covarde, que não agüentou a pressão das circunstâncias que o envolviam. Providências, assistente social para apoiar a família e providenciar o funeral, e uma nota lacônica convidando para assistir ao enterro… Não resisti à provocação e fui, em pensamento, direto a Novalis, o poeta-filósofo que soube bem compreender a relação do idealismo com a morte, e o demonstrou neste arrebatador fragmento: “O ato filosófico autêntico é o suicídio; reside aí o começo real de toda a filosofia; é para isso que tendem todas as necessidades do futuro filósofo; e só esse ato está em conformidade com as condições e as características de uma ação transcendental.” Por que este exemplo? Que me sugere ele além da compreensão de que é bom guardar na cabeça a sída sempre possível que nos oferece?  Nenhuma outra razão senão a de sugestiva oportunidade que se me apresenta para penetar na fenomenologia da morte. Em primeiro lugar, revela-me que a vida é a morte em processo: a existência propriamente humana é então uma morte voluntária continuadamente assumida.

Hengel afirmou, na Fenomenologia do espírito, que morte é a única obra e realização da liberdade universal: “o homem não é simplesmente mortal; é a encarnação da morte; é a sua própria morte. Os médicos, acostumamos com essa idéia enganosa de que é sempre possível prolongar a vida, a ponto de incorrer, com freqüência, na inútil presunção de poder garanti-la com técnicas sofisticadas, e, cada vez mais, nos afastamos da inexorável certeza da morte. Montaigne, com sua peculiar genialidade, resultado de uma educação perfeita, em sua enciclopédia de humanismo literário, Os Ensaios, afirmou ser “a morte o objeto necessário de nosso alvo, se ela nos assusta, como será possível dar um passo à frente sem febre? O remédio do vulgo é não pensar nela…” A medicina,  advertiu André Comte-Sponville, pode ser útil a isto, por que isso nunca foi mais verdadeiro do que hoje: o hospital põe a morte à distância, para os outros, para os saudáveis, a tal ponto que eles acabam, por vezes, esquecendo-a. “Morrer? Nem pense nisso! Parei de fumar e tenho um médico ótimo…” “Meu colesterol não chega a 200, meu teste de esforço foi negativo…” “Pobres crianças que somos!” “Outros, contra a angustia, se entopem de ansiolíticos, outros se atordoam no trabalho ou no prazer…” “Fingem não morrer, e é a isto que chamam sua saúde.”  E o mais trágico de tudo é que essas presunçosas figuras que “prescrevem  substâncias que pouco conhecem para curar doença que conhecem menos ainda,  a pessoas das quais nada sabem”, os médicos, afirmam e garantem isso…

Tendo perdido a bússola da metafísica, porque abdicarm-se, há muito, do estudo das humanidades, os médicos, a despeito dos seus prodígios científicos, se perderam pelos descaminhos da biologia, e já não podem compreender que toda vida, independentemente da sua duração, seja um dia, sejam oitenta anos, é completa, se se atinge a sua meta, que é a morte!

A medicina não é uma ciência, é uma técnica. Não há negar que é uma técnica que se apóia em numerosas ciências, daí o seu caráter científico, que não é tão remoto, como se presume. Somente no século XIX, em França, com Magendie e Claude Bernard, é que a medicina opera sua revolução epistemológica, até chegar ao surpreendente desenvolvimento dos dias atuais. Até meados do século XIX o remédio que mais se vendia nas farmácias de Paris era sanguessuga!

“De todos os progressos científicos e técnicos que nosso século conheceu, e eles são consideráveis, nenhum nos toca mais de perto que os da medicina: eis nossa própria vida, em sua intimidade biológica e psicológica, tornada objeto de ciência!” Esses mesmos progressos, que, por um lado, produziram maravilhas notáveis, como é o caso das vacinas, hipertrofiaram tanto, por outro, a soberba científica do médico, que às vezes parece confundir-se com o próprio Criador, a ponto de apequenar, na mesma proporção, o humanismo sem o qual a medicina não passa de uma sofisticada técnica a serviço do mercantilismo que a cerca.

Com a lucidez que o distinguia, Mário Rigatto foi direto ao âmago da questão: “No último século, a medicina registrou a quase totalidade de suas vitórias científicas ao longo dos tempos. Suas conquistas abrangeram três campos básicos: 1º.) o mais importante, o menos dramático e o menos comentado: a preservação do organismo sadio (vacinas, antibióticos);  2º.) o menos importante, o mais dramático e o mais comentado: substituição de partes do organismo doente (próteses, transplantes); 3º.) o mais festejado: o “calote” (drogas para emagrecer, “hormônios”, a “pílula”, “fortificantes”). “Do ponto de vista científico, os três campos são igualmente respeitáveis. Do ponto de vista socioeconômico, o primeiro é tão mais importante que reduz os dois últimos a muito pouco. Não obstante a disparidade de valores, o maior esforço do homem se concentra nos dois últimos campos”.

Eis aí a sentença: o médico, fascinado pelos anúncios luminosos de questionáveis progressos, que são a ciência a enganar, não só combate a doença, mas a agrava ou a produz. Em memorável discurso de ocasião, aos formandos de medicina, em 1968, o grande professor aconselhou: “lembrem-se que mais importante do que “ser normal” é “sentir-se normal”. Não criem “doentes” atribuindo a esta ou àquela “doença” sintomas vagos, inespecíficos e, o mais das vezes, transitórios. Não criem “inválidos” a partir de anormalidades bioquímicas cujo real significado desconhecemos”. Esse conselho, entretanto, pelo que me é dado observar, não tem sido seguido. O sedare dolorem divinum opus est e o primum nom noscere são, hoje em dia, fósseis retóricos conhecidos apenas dos que se dão à pena de praticar a arqueologia médica, tamanha a dissociação entre o tecnicismo, que só considera a condição “paciente” do indivíduo, e a atenta e inteligente observação clínica, que considera o indivíduo e suas circunstâncias. “Yo soy yo y mis circunstancias”, e, das minhas circunstâncias, a mais certa, a mais inexorável é a minha morte. Opinam e interferm na minha vida sem nada dela conheceram, porque “a realidade da vida consiste, pois, não no que é para quem de fora a vê, mas no que é para quem desde dentro dela é, para o que a vai vivendo enquanto e na medida em que a vive.” “Daí que conhecer outra vida que não é a nossa obriga a intentar vê-la não apartir de nós mas a partir dela mesma, a partir do sujeito que a vive.” Heidegger, existencialista notório, penetrou o cerne da ontologia do existir, e nos adverte que habitualmente imerso na inautenticidade, que lhe oculta a realidade da própria condição, o homem, no entanto é capaz de verdade, quer dizer, de desvelar ou revelar a si mesmo a temporalidade essessial de sua existênncia, de ser-para-a-morte. Sempre incompleto, ou inacabado, procurando realizar projetos que jamais se cumprirão integralmente, o ser-aí não é afetado pela morte como por um acontecimento exterior, mas é, essensial e constitutivamente, um ser-para-a-morte. A angústia e a mortalidade do ser-aí, permite, assim, o acesso à existência autêntica. A presunção científica do médico, que se exorbita nessa figura questionável que é o “especialista”, o leva ao erro fatal de não considerar a vida a partir do sujeito qua a vive, mas como ele a entende a partir dos seus pressupostos biológicos e técnicos. Se a vida não é levada em conta de uma necessidade num sentido subjetivo, simplesmente porque o homem decide autocraticamente viver, não se há de supor que se dê à morte a importância metafísica de estar contida na própria vida. Freud, nos Ensaios de Psicanálise, escreveu: “Lembremo-nos do velho adágio: si vis pacem, para bellum. Se queres manter a paz, arma-te para a guerra. Já é hora de modificá-lo: si vis vitam, para mortem. Se queres ser capaz de suportar a vida, esteja pronto para aceitar a morte.” Suportar a vida, foi o que disse o inventor da psicanálise! Mas, podemos dizer, sem corromper o sentido original, se pretendemos gozar a vida; amar a vida; vivê-la intesamente, que estejamos prontos para a sua meta, que é a morte.

Enquanto não nos damos conta disto, vamos, com a nossa presunçosa e vã “ciência”, dosnado o colestrol, caluniando o óleo de dendê, difamando o açucar, esconjurando o tabaco, baixando a taxa de mortalidade… e nos iludindo que se morre cada vez menos. Quem morre é o indivíduo, e todos os indivíduos morrem. Podemos até morrer mais tarde, mas que morremos menos, não. A taxa de mortalidade, para quelquer indivíduo, não foge à constância de ser igual a um. É com esta inexorável  e costante taxa que me defroto todos os meus insignificantes dias, e do seu nunerador jamais me esquivarei. Se preferem a ilusão das taxas dos demógrafos, que projetam um prolongamento indefinido da vida, que oçam, para finalizar, o demônio:

Não és mais, meu senhor, do que és: um mortal!

Perucas podes ter, com louros aos milhões,

Alçar-se com teus pés nos mais altos tacões,

Serás sempre o que és: um pobre ser mortal!

(Mefistófeles – Fausto, Goethe)

Fernando Guedes

7/5/2005

Proferido no II Encontro de Profissionais de Saúde da Petrobrás

dez 10, 2002 - Poligrafia    No Comments

Por que será?

Que o que tinha esse corpo de inefável

Cristalizou-se na tuberculose.

Cruz e Souza

Vomitar o pulmão na noite horrível

Em que se deita o sangue pela boca!

Augusto dos Anjos

A febre me queima a fronte

E dos túmulos a aragem

Roçou-me a pálida face.

Casimiro de Abreu

A dor no peito emudecera ao menos

Se eu morresse amanhã.

Álvares de Azevedo

Eu sinto que vou morrer… dentro em meu peito

Um mal terrível me devora a vida.

Castro Alves

Os médicos e as mulheres são, afirmou Afrânio Peixoto, as criaturas mais sujeitas à moda, esse tirânico fenômeno sociológico, que, quando não deturpa, exagera a percepção dos fatos. Tem sido assim em relação a certas problemas de saúde pública, que são divulgados como se possuíssem uma dimensão além do seu real tamanho. Não tenho a intenção de menosprezar a importância de certas doenças, nem sequer de negar o valor das medidas de prevenção e controle de todas elas, exagerado, ou não.

Interessa-me a tuberculose, que parece já não merecer, das autoridades sanitárias e dos médicos, atenção proporcional à sua extensão, enquanto problema de saúde pública. Como o comportamento humano prima-se pela comparação, assim é na vida: compara-se, para optar, de onde eu suponho o equívoco dessa supervalorização atribuída à SIDA (AIDS dos susceptíveis à colonização lingüística), que, não obstante tratar-se de uma doença que reclama atenção responsável, porque iniciou, entre nós, com uma letalidade de 100%, tem sido, até hoje, motivo de uma atenção desproporcional à sua distribuição na população, se compara à tuberculose, por exemplo. A sua conseqüência, já que conseqüência, para mim, é morrer antes de morrer, não pode ser argüida, para justificar o que não devia ocorrer.  Penso que, em relação a esta doença, estão todos abusando da faculdade de opção.

Os números oficiais do Ministério da Saúde não dizem outra coisa: no período que vai de 1980, quando aqui surgiu o primeiro caso de SIDA, a 2000, portanto intervalo de tempo em que ambas co-existem, cantam-se 1.747.531 novos casos de tuberculose e 215.701 de SIDA. Nesse período, as médias de óbitos, de uma e de outra, se aproximam, em torno de 5.697, para a tuberculose, e 5.032, para a SIDA.

Dirão, os que acham que a SIDA merece mais propaganda que a tuberculose, que, para causar 105.679 mortes, ela produziu apenas 215.701 casos novos, enquanto a tuberculose, para matar 119.643 pessoas, adoeceu 1.747.531 indivíduos. E justificam, por dedução, de peito cheio: a SIDA é mais letal! Que o seja, mas isto nada justifica, se ambas, ao cabo, causam o mesmo número de mortes. Em verdade, o que as difere, se oculta, por conveniência, ou hipocrisia: o estrato da sociedade que cada uma delas atinge. A tuberculose, que já não mata notáveis, como no passado, perdeu sua notoriedade, agora grassa, impunemente, nas camadas mais miseráveis da sociedade, enquanto a SIDA apavora os “vips”, que influenciam, que controlam, que agenciam, que impõem sua vontade à sociedade de consumo, que eles mesmos engendraram. A época de “celebridade” da tuberculose já se foi, agora, ela só mata arraia-miúda, que, nesta desgraçada nacionalidade, não tem quem lhe chore a desdita. Para mim, vida é vida, miserável ou “vip”, portanto não posso compreender essa desigualdade de atenção. Se me fosse possível conceber que a importância, com que se leva em conta as medidas de prevenção, ou controle, de uma determinada doença, pudessem ser proporcional à importância do estrato social atingido, a SIDA jamais ombrearia a tuberculose. Antonie Watteau, Carl Maria Von Webwe, Simon Bolívar, Frederic Chopin, Henry David Thoreau, Anton Tchekhov, Amadeu Modigliani, Gauguin, Moliére, Shiller, Mozart, Calvin, Spinoza, Laennec, Franz Kafka, Noel Rosa, Zequinha de Abreu, Gaspar Viana, Manoel Bandeira, Álveres de Azevedo, Cruz e Souza, Augusto dos Anjos, Casimiro de Abreu… paro, porque a lista seria interminável. Ah! Querem mais? Pois bem, eis tudo: a tuberculose matou o Brasil inteiro, matando a Bahia, ao matar Castro Aves! Mas, apesar de achar que a infecção que vitimou o Poeta dos Escravos vale uma pandemia, os meus escrúpulos de médico fazem-me raciocinar de outra forma.

A SIDA é importante problema de saúde pública, sim; mas a tuberculose não é menos do que ela, e, se não o é, merece que se lhe dê a mesma atenção, pelo menos. Estima-se que, no Brasil, do total de sua população, 35.000.000 a 45.000.000 de pessoas estão infectadas pelo M. tuberculosis, com uma média de 100.000 casos novos por ano, mas não se vê nenhuma campanha, nenhuma propaganda alertando sobre essa catástrofe, que grassa no silêncio de sua miséria; nenhuma ONG com isto se importa; nenhuma empresa cogita-se disto, nas suas campanhas internas de prevenção de doenças. Por que será?

Fernando Guedes

10/12/2002

out 18, 2000 - Poligrafia    No Comments

Cidadania: a que se aplica?

As palavras, como as mulheres, são sujeitas à moda. A moda, tirânico fenômeno sociológico, às vezes levam as pessoas ao ridículo, quando não se observam certos limites, que, se ultrapassados, distanciam as criaturas da autocrítica, deixando-as livres para o mau uso das coisas. Cidadania é palavra da moda, que atualmente entrou para o liliputiano vocabulário dos políticos, que a empregam para tudo, de forma desastrada, e, não raras vezes, em contextos que as acepções do termo não permitem. Uma palavra mal usada é infinitamente mais danosa que um vestido mal posto.

O termo (que corresponde ao espanhol ciudadanía, ao italiano cittadinanza, ao francês citoyenneté, ao inglês citzenship) provém do substantivo cidadão, cujo sentido moderno, da acepção a que me refiro, nasceu de discurso de Pierre-Augustin Caron de Beaumarchaism em 1774.

Este sentido, que se distancia do etimológico, adquiriu uma noção jurídica, ao denotar a condição de um indivíduo como membro de um Estado, e portador de direitos e obrigações. Influenciou a semântica moderna do termo a transformação histórica que implicou a formação dos Estados centralizados, impondo jurisdição uniforme sobre um território não limitado aos antigos burgos ou cidades medievais.

Até ao início dos tempos modernos, o reconhecimento de direitos humanos e sua consagração no direito positivo era limitado aos burgos ou cidades. A rigor, a individualização desses direitos não existia até ao surgimento da teoria dos direitos naturais do indivíduo e do contrato social.

Dessa forma, a evolução sociológica e política que transformaram a sociedade implicou que cidadão tomasse sinônimo de homem livre, portador de direitos e obrigações a título individual, assegurados em lei.

Conseguintemente, cidadania nada mais é que a qualidade de cidadão, e possui um aspecto sociológico e um aspecto político. Neste último sentido, expressa a tão decantada igualdade em face da lei, que deriva da égalité, que a Revolução Francesa espalhou pelo mundo em fora. Assim, o sentido restrito do termo, que não extrapolava os lindes dos antigos burgos, adquiriu amplitude nacional, com a formação e unificação dos estados modernos, capazes de exercer efetivo controle sobre seus respectivos territórios e de garantir aos seus habitantes, de maneira uniforme, os mesmos direitos.

A idéia de que o homem, pela sua própria natureza humana, pudesse dispor de certos direitos a ela inerentes, e oponíveis ao poder do estado, é anterior à Revolução Francesa, e tem sua concretização com a Declaração de Direitos americana (Bill of Rights, 1689), onde adquiriu, pela primeira vez, forma positiva. No campo do direito positivo, os direitos humanos foram incorporados ao direito constitucional moderno pela Revolução Francesa. A principio, a teoria do direito constitucional dividiu os direitos humanos em naturais e civis. Os naturais correspondiam à idéia da existência pré-social de um estado natural do homem, e se incumbia de garantir aquelas faculdades primordiais da criatura humana, com que a natureza a caracterizava: liberdade pessoal, de religião, de pensamento etc. Os direitos humanos civis corresponderiam à evolução do homem, do estado natural para o estado social, caracterizado pelos processos de civilização, que admitiam que a liberdade natural, mais ampla, pudesse evoluir para a liberdade civil, mais limitada, posto que os seus limites coincidiam com os da liberdade dos outros homens,  tornando clássica a máxima: o direito de um começa onde termina o do outro.

A Constituição é a fonte primordial dos direitos individuais, portanto da cidadania. Que diz a nossa? No título dos princípios fundamentais, o Art, 1o dispõe, no inciso II, que a Republica Federativa do Brasil fundamenta-se na cidadania, no inciso III assinala o fundamento na dignidade da pessoa humana. No Art. 3o estão consignados os objetivos fundamentais do Estado brasileiro: construir uma sociedade livre, justa e solidária; garantir o desenvolvimento nacional; erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

Não quero me delongar na citação de artigos referentes aos direitos individuais, para não tornar o assunto enfadonho, mas fixar a análise no Art. 13, que estabelece a língua portuguesa como o idioma oficial da República Federativa do Brasil, o que me leva à dedução que a nenhum brasileiro é permitido desconhecê-lo, constituindo-se isto na primeiríssima obrigação da cidadania, posto que a condição de cidadão implica também em deveres.

Cidadania são direitos e deveres tutelados pelo Estado, inerentes ao indivíduo, decorrente da sua natureza humana. O homem e a mulher são cidadãos, as coisas não o são, porque lhes falta a natureza humana.

A não observação do dever decorrente do Art. 13, da Constituição, é que leva a essa coisa absurda de se confundir filantropia com cidadania. Ora, se os direitos da cidadania são tutelados pelo Estado, como está disposto na Constituição, e se o Estado não os garante na prática, só se pode falar em estímulo ao exercício da cidadania se os agentes que se dizem envolvidos nisto agissem de forma a obrigar o Estado cumprir a Constituição, patrocinando, por exemplo, ações judiciais contra a irresponsabilidade estatal. Se é dever do Estado erradicar a pobreza, da qual decorre a fome, não será através de comité du pain que se exerce a cidadania, isto, no máximo, é exercício de filantropia. Filantropia é amor à humanidade, pode e deve ser praticada, mas difere substancialmente de cidadania, que implica a noção de direito irrenunciável.

Como os agentes econômicos não têm nenhum interesse em lutar contra o Estado em prol da erradicação da pobreza, criaram esse mito de “empresa cidadã”, que nada mais é do que filantropia subsidiada com renuncia fiscal. Tudo faz parte da estratégia de propagada dos grupos hegemônicos transnacionais, engendrados pela globalização, que passam a assumir funções dos Estados nacionais incapazes, criando a fábula de que as empresas e os cidadãos bem sucedidos economicamente têm o dever de fazerem  o que não faz o Estado.

Fernando Guedes

18/10/2000

set 28, 2000 - Poligrafia    No Comments

Não sabem ser justos, e querem ser livres…

O Século XIX, com sua tônica de violência, inspirou a luta das classes trabalhadoras, cujo sindicalismo, dito revolucionário, no limiar do novo Século, encontrou em Sorel a fonte onde saciava sua sede de barbárie. Pretendeu-se derrotar o capitalismo e, para tanto, era necessário inspirar, na classe trabalhadora, uma fé; não uma fé religiosa, mas um objetivo engendrado num mito: a greve geral, cujo objetivo final era o estabelecimento do poder absoluto da classe operária. Nada melhor para propagação dessa fé do que uma bíblia, e não podia haver outra melhor do que as “Reflexões sobre a violência”, onde Sorel, tangido pelas idéias de Blanqui, sistematizou toda a técnica da violência. Eis o livro sagrado dos agitadores das massas…

Embalados pelo coletivismo marxista, cuja finalidade é a anulação do indivíduo, eles, ao contrário do que possa parecer, rejeitam o povo esclarecido, porque preferem cortejar a massa, essa coisa amorfa, plasmável, sem direção, capaz de absorver, em lapso de minuto, a liturgia de sua fé.

Sorel, contudo, era cheio de contradições, o que o levou a exaltar Mussolini, quando este despontava como líder, e, logo depois, Lenin, quando o bolchevismo triunfou na Rússia, o que no fundo não tem lá nenhuma diferença prática. Sendo o leninismo o desenvolvimento teórico e prático do marxismo, encontra-se com o fascismo no campo do totalitarismo.

Dois dias atrás, o Sindicato dos Trabalhadores Químicos e Petroleiros do Estado da Bahia promoveu um movimento de paralisação do Conjunto Pituba, da Petrobras, durante o qual integrantes seus, em atitudes autoritárias, antidemocráticas, violentas física e moralmente, constrangeram e agrediram pessoas que não concordam com a sua linha de pensamento, e não estavam dispostas a participar da paralisação. O que se viu foi um grupo de velhacos reacionários quererem impor, pela violência, a sua idéia, porque já a não conseguem propagar pela palavra doutrinadora. E, em meio à escuridão política que se abate sobre a Nação, se valeu da bruxuleante luz do fogo-fátuo que promana do pântano, onde se decompõe o cadáver das idéias de Sorel, para nada alumiar, e, aos que não se coadunam com a sua fé, o fel do seu violento ódio: impropérios, agressões, cerceamento de direitos individuais, enfim: autoritarismo. Ironicamente, tudo o que eles mesmos condenam nos outros.

Será que ainda não perceberam que já estamos no limiar do Século XXI, que não admite a violência como instrumento de luta? Nada aprenderam com o mais revolucionário dos líderes: o Cristo? Será que ignoram o exemplo que nos chega do médio oriente, em que o mais sanguinário dos terroristas, Arafat, renunciou à violência, convencido de que só a tolerância o levaria à finalidade de sua luta: uma Pátria Palestina? Não foi pregando e praticando a não-violência que Gandhi fez tremer as bases do presunçoso Império Britânico?  Por acaso ainda não se deram conta de que as práticas sorelianas são uma roupa fora de moda que já não se deve vestir?

Não sou idólatra deste governo que aí está, tampouco o sou dessa direita retrógrada que o engendrou. Sou livre, e quero livremente viver, sem constrangimentos de qualquer natureza, ou de qualquer latitude política, por isto não posso aceitar que me venham impor idéias que eu não aceito. Sobre essa caterva antidemocrática há de cair, como um anátema, a sentença de Sieyès: Não sabem ser justos, e querem ser livres…

Fernando Guedes

28/09/2000

jul 31, 2000 - Poligrafia    No Comments

Carvão: Prosperidade ou Inconsciência Ecológica?

Revista de ocasião, publicada pela Prefeitura Municipal de Riacho de Santana, em agosto de 1999, referindo-se à economia do município, informa que com o declínio da atividade algodoeira “verificou-se a intensificação da pecuária e o desenvolvimento de outras atividades, como por exemplo a produção de carvão, que confere ao município um indesejado lugar de destaque no processo de desamamento do estado”. Posto que oficial, e partindo de onde partiu, esta denúncia é insuspeita. O que é estranho é o silêncio em torno dela, que compromete a sociedade riachense de cabo a rabo.

É oportuno fazer logo um reparo. A queimada vem de longe, aqui, já antes do descobrimento, os índios a praticavam para afugentar animais selvagens da taba. Com o machado introduzido pela civilização, o método se propagou, pelas mãos dos exploradores da nova terra, que o aprenderam com os árabes, que talaram a Ásia Menor e norte da África, chegando à Europa. Na península ibérica, com eles se ilustram os portugueses. Eis como diplomamos os nossos primeiros fazedores de desertos!

Em Riacho, no raiar do século XXI, quadra em que a consciência ecológica já domina as atitudes dos povos civilizados, a queima da mata subsistente para produção de carvão é a principal atividade econômica, com a qual está toda a sociedade envolvida. E o mais grava em toda esta desinteligência, que sustenta a prosperidade momentânea, de alguns poucos, porque o resto é dela vítima, é defendida por homens que cursaram universidades, e por autoridades que deviam combatê-la. Pessoa insuspeita, posto que envolvida com ela, segredou-me que o negócio de ATFs é coisa vulgar na cidade, e que havia um conluio entre os carbonários e os propostos do IBAMA, que sempre fizeram vistas grossas diante dessa agressão ecológica contra o município.

Com efeito, a coisa rola tão acintosamente que, para constatá-la, é só contar no número de carretas envolvidas no transporte do carvão, de fornos espalhados por todo o município, ou pesquisar junto ao fisco estadual o montante da sonegação de impostos. Na região da Moita, por exemplo, depoimento de possa idônea atesta que a poluição atmosférica pelos fumos da queima de madeiras é impressionante.

Acostumada com as muletas  dos empréstimos subsidiados, que consumiram milhões e milhões do erário, e que sempre eram desviados para atividades estranhas à agricultura, com as liberações facilitadas dos pró-agros, essa incapaz sociedade, tendo a fonte secada, vale-se hoje dessa atividade predatória, prejudicial ao meio ambiente, destruidora de ecossistemas sensíveis, sem ser incomodada pelas autoridades que têm o dever de evitá-la. Pensando bem, é muita ingenuidade minha pensar que numa sociedade comprometida com toda espécie de desmando se possa esperar alguma atitude de suas autoridades, que não estão em acordo com o senso prático e imediatista de sua gente. Quando a educação de uma sociedade não é capaz de permitir a elaboração da consciência de preservação o seu patrimônio cultural, certamente não lhe permitirá a geração do sentimento de apreço pelo meio ambiente.

Recentemente, uma partida de bobinas de cabo de alumínio, que uma indústria brasileira exportou para Dinamarca, foi toda devolvida, porque uma inspeção de recebimento constataou, naquele país, que a madeira, com a qual foram feitos os carreteis, era de mata nativa, que para eles é inadmissível. A isto se chama consciência ecológica, condição sem a qual a sobrevivência da humanidade tornará impossível neste planeta, se ela não começar a preservar suas matas, suas fontes d’água, sua camada de ozônio, sua biodiversidade. Se o “burguezinho carbonário” ficar pensando apenas no seu bem estar momentâneo, e perseverar nesta atividade nefasta, está muito enganado, porque depois ele irá perceber que a sua consciência vale menos que o carvão que produz ou trafica.

Quando o interesse do mundo – o dinheiro – está envolvido, é difícil crê nas atitudes de uma sociedade corrompida, portanto, enquanto assistimos ao clarões das queimadas, recitemos de Castro Alves:

Então passa-se ali um drama augusto…

N’último ramo do pau-d’arco adusto

O jaguar se abrigou…

Mas rubro é o céu… Recresce o fogo em mares…

E após… tombam as selvas seculares…

E tudo se acabou!…

 

Fernando Guedes

Julho/2000

jul 31, 2000 - Poligrafia    No Comments

Bajulação de Poder

Na história da nossa formação política, desde o período colonial, passando pelo império, até à república, é a bajulação de poder a regra predileta da elite burguesa que manipula a atividade política há 500 anos. Com o advento da república, que fora imposta como remédio para os males do império, e que logo se mostrou sem nenhum efeito terapêutico,  a bajulação de poder foi elevada a uma escala nunca vista na história das nações. Em todos os níveis desta absurda federação nominal, desde 1889 até aos dias atuais, os poderes, numa convivência promíscua, bajulam-se, tramam e engendram a infelicidade da nação: seca, fome, analfabetismo, endemias, violência, corrupção, roubo, desamparo, etc., tudo é responsabilidade deles, que se toleram na pantomima da bajulação. O legislativo bajula o executivo, que bajula o judiciário, que bajula o legislativo, num ciclo perverso, determinante da falência daquela autonomia pensada por Montesquieu e que faz a prosperidade das Repúblicas civilizadas.

Li, na Tribuna do Sertão, matéria sobre a concessão, pela Câmara de Riacho de Santana, de título de Cidadão Honorário ao juiz de direito daquela comarca. Noticiou o periódico que o projeto de lei fora apresentado por um vereador da situação e aprovado pela unanimidade da Câmara, e que, na sessão solene de entrega ao magistrado do seu título, o representante do executivo, na sua oração, declinou os motivos que levaram à outorga daquela distinção honorária: a simplicidade e imparcialidade com que o magistrado se conduz na apreciação dos feitos sob responsabilidade de julgar.

Que vem a ser cidadão honorário? Não importa o que diz a lei na qual se basearam os vereadores riachenses, se nela não figurar a correta definição. Vamos por partes. Cidadão possui três acepções: o que pertence à cidade; aquele que goza dos direitos civis e políticos num estado; o indivíduo considerado no desempenho dos seus deveres como membro de um estado. Honorário é: que dá honras e não proveitos materiais. Por conseguinte, cidadão honorário, no particular, é aquele que, não pertencendo à cidade, a ela se incorporou espiritualmente, em face de uma atuação profícua em seu favor, que produziu obras ou lhe prestou serviços relevantes.

Investiguei e não divisei nenhuma obra, em favor da cidade, realizada pelo magistrado, no curto tempo que assumiu, como juiz titular, a comarca de Riacho de Santana. Consta que apenas cumpriu, com probidade, os deveres do seu mister, para o qual é estipendiado pelo erário.

Não admira que a situação se comportasse da maneira que se comportou na outorga desse título, afinal manter-se na situação, nesta República loteada, é exercer, com maestria, a arte da bajulação. Mas, a aprovação da oposição nesta matéria é de uma incoerência imperdoável, pois quem colabora com bajuladores, também bajula, e, se bajula, não merece confiança.

Justificar o título argüindo o magistrado de imparcial, como atributo extraordinário, que mereça distinção honorária, é absurdo que não se pode tolerar. Afinal, imparcialidade é atributo fisiológico da magistratura, portanto inerente a ela, próprio dela. É a sua própria natureza.

De mim, ouso dizer que, se a pessoa do magistrado aceitou, por urbanidade e educação, a imerecida honraria, para não melindrar a sua convivência com a comunidade riachense, que os vereadores dizem representar, não vejo nenhuma inconveniência, porque o ridículo é da classe política; mas, o perigo subliminar, que sob o manto da honra se alaparda, é o constrangimento da autoridade, pelas extravagâncias dessa mesma classe, que no Brasil está longe de ter juízo.

Consta que o magistrado, na sua oração, remeteu a honra à magistratura baiana, para dissipar a atmosfera de constrangimento. Eu, aqui presto, à magistratura universal, uma homenagem evocando o nome de Anfilófio Botelho Freire de Carvalho, o juiz integral, que, em caso semelhante de condecoração, o escrúpulo do juiz julgou-a indevida, repelindo, com energia, a investida dos bajuladores, advertindo-os seriamente.

Da classe político, infelizmente, não me ocorre exemplo para citar, nem acho que ela mereça homenagem.

Fernando Guedes

Julho/2000

mar 30, 2000 - Poligrafia    No Comments

Subserviência lingüística

Os brasileiros amamos a colonização. Outrora o conquistador aqui chegou e se deslumbrou com a terra. Deu-lhe nome sagrado, e começou a explorá-la predatoriamente. A gente que aqui encontrou logo percebeu que era “boa e de boa simplicidade”, que podia fazer dela o que quisesse. Não contente em também explorá-la, de ludibriá-la com estratagemas ridículos, de impor-lhe sua crença, dizimaram-na quase que totalmente. Hoje os que restam são párias aculturados. Os descendentes dessa gente, com a qual se misturaram fidalgos, degredados, criminosos, heréticos, contrabandistas, etc., que somos nós, não perderam o amor pela colonização. Tudo que é de fora é melhor que o nosso, em todos os aspectos. Até o idioma, que é a primeira condição da cidadania, preferimos o estrangeiro: colonização cultural.

Neste particular, já somos um povo quase sem identidade própria, porque a nossa subserviência lingüística é tão marcante que já não sabemos que idioma falamos. E o mais absurdo nesta questão é que os abusos partem de pessoas de quem não se devia questionar o esclarecimento, porque de instrução superior. Não me refiro às sutilezas do idioma pátrio, que só são observados por quem lhe tem apreço; nem dos deslizes que se cometem na linguagem coloquial, que são em todos os idiomas relevados; nem da evolução própria aos idiomas vivos, dos esquecimentos etimológicos que transformam significados. Não, não é contra isto que me insurjo. Cinjo-me ao emprego de estrangeirismos desnecessários e impróprios, muito ao gosto de certos técnicos que não têm o cuidado de traduzir textos estrangeiros respeitando o vernáculo, e aí criam verdadeiros absurdos, que subvertem as normas da gramática portuguesa.  E o que é mais grave nessa subserviência idiomática é que esses estrangeirismos nos são impostos como termos corretos, que terminam disseminados por aí afora por pessoas que desconhecem o idioma pátrio, ou que não têm por ele nenhum apreço: ignorância e desamor são móvel da colonização cultural.

Recentemente, numa discussão técnica, com um conceituado assessor para certificação ISO, perguntei-lhe se não seria conveniente trocar, no texto de um procedimento de inspeção e ensaio, o termo inglês tag para o português etiqueta, e tagueamento (nem inglês, nem português) pelo substantivo etiquetagem, formado do verbo etiquetar, que são galicismos já absorvidos pelo vernáculo. A reposta foi não, e quis me convencer que tag é diferente de etiqueta. Compulsei o Webster, um dos conceituados e mais completos dos dicionários do idioma inglês, e não divisei essa diferença; ao contrário, tag, na acepção aplicável ao dito texto, é etiqueta, rótulo ou marca. Então, não há nenhuma justificativa lingüística que possa sustentar o emprego do estrangeirismo, porque há no português termos adequados à clareza da escrita. Por que só o termo tag, e não todo o texto em inglês? Seria mais razoável!

Foi com grande satisfação que li no A Tarde, edição de 11/3/2000, a notícia que o deputado Aldo Rabelo elaborou um projeto de lei em defesa do uso do idioma pátrio, que estabelece pesadas multas contra quem incorrer no uso de expressões estrangeiras, quando houver equivalentes em português. Não espero que lei possa fazer o que a educação não fez, mas quem sabe atingidos na algibeira certos brasileiros se convençam que o nosso idioma é o português, e aí se dêem ao trabalho de consultar bons dicionários, para que possamos gritar “independência ou morte” contra os grilhões da servidão lingüística, e começar a garimpar “o ouro nativo, que na ganga impura, a bruta mina entre cascalhos vela”.

Fernando Guedes

30/3/2000

mar 2, 2000 - Poligrafia    No Comments

Cidadão, mas… “nem tanto”

Determina a Constituição desta República, essa mesma que os políticos vivem a emendar, de acordo com as conveniências do momento, no seu artigo 196, que “a saúde é direito de todos e dever do Estado”, ao qual a prática da vida cotidiana acrescentou um “parágrafo único”, que bem poderia assim ser redigido: “somente para os cidadãos inteiros”. É que nesta deformada República há duas categorias de cidadão: “inteiro” e “nem tanto”. “Inteiro” é cidadão para os qual nada falta, inclusive a eficiência da justiça, a que se chega pelos serviços de notáveis advogados, regiamente pagos… “Nem tanto”, ao contrário, é aquele a que tudo falta, porque lhe falta aquilo com que se compra tudo… e vive da quimera de que é igual à outra perante a lei. Como é a maioria (Napoleão não entendia porque os pobres, imensamente majoritários, não dizimavam os ricos, que são a minoria), essa classe tem duas utilidades muito apreciadas pela elite dominante: sua crença inabalável nos políticos, e a sua capacidade de estimular o falso sentimento dos mercadores de benemerência, essa espécie de gente que vive de fazer cortesia com chapéu alheio, e que já produziu até beatos, para júbilo dos hagiólatras. O que há por aí de instituições de piedade dá até para desconfiar, sendo os brasileiros o que são… De falsas promessas e esmolas sobrevivem às mais desfavoráveis condições, com uma resignação impressionante, sempre dóceis e humildes ao mau trato, debitando sempre seu fado à vontade de Deus.

Desde o princípio, já era assim em Santa Cruz: “esta gente é boa e de boa simplicidade. E imprimir-se-á ligeiramente neles qualquer cunho que lhes quiserem dar”.

Tudo isto é para contar uma breve história de um “nem tanto”, que conheci recentemente. Trata-se de A. F. dos R., 62 anos de idade, mecânico, residente em Paripe, que em 8 de dezembro de 1999, no trajeto do local de trabalho para sua residência, foi atropelado e sofreu sério traumatismo no antebraço direito. Como era o dia de N. Sra. da Conceição da Praia, ocasião em que tudo pára em homenagem à Santa, lá pelas bandas onde mora não encontrou socorro médico. No dia seguinte procurou uma clínica em Paripe, dessas que trabalham para o SUS, onde fez uma radiografia, que revelou fratura. Recebeu uma tala de gesso no membro fraturado, e saiu com a orientação de consultar um cirurgião de mão, porque havia a indicação de correção cirúrgica da fratura. O “nem tanto” começaria a provar, na própria pele, sem o saber, o que significa não estar enquadrado no “parágrafo único” a que acima nos referimos, e saiu em busca do especialista, e o procurou, procurou; bateu em portas várias, e só ouvia uma resposta: custa três mil reais; pelo SUS, não tem conversa… Mas não estava de todo sem sorte, encontrou, no Pau da Lima, uma Clínica maneira, que lhe cobrou, pela operação, a módica quantia de trezentos e setenta reais, isso depois de peregrinar de serviço em serviço, durante mais de 30 dias. Como o empregador só é responsável pelo pagamento dos quinze primeiros dias após o acidente, e a sua primeira perícia médica, no INSS, a que o habilitaria a receber o auxílio-doença, só se realizou em 1/2/2000, não é preciso dizer que o meio-cidadão estava, a esta altura, literalmente na lona: contas de luz e água atrasadas, sem dinheiro para o gás, para a comida, para os remédios, para o transporte etc. Diante de si só burocracia, desdém, incompreensão, humilhação… Se lamentou, ninguém lhe deu atenção; se chorou, nenhum burocrata lhe observou as lágrimas; a medicina, tão presunçosa e desenvolvida, rejeitou-lhe eficácia, e o meio-cidadão seguiu seu itinerário, conformado com a sua sorte… À noite, vencido pelo cansaço do seu peregrinar pelas filas da indiferença, liga o televisor, que provavelmente ainda não o quitou, e observa um desfilar de noticias antitéticas: “o antes e o depois” das cirurgias plásticas de deputados, senadores, governadores, ministros e demais cidadãos inteiros, e a morte de recém-nascidos cujas mães foram rejeitadas em maternidades superlotadas; vê um ancião morrer na sala de espera de um hospital, sem socorro, e, no mesmo bloco fica sabendo que o resfriado de notável figura da política é cuidado por uma equipe de renomados especialista; assiste ao relaxamento da prisão de um criminoso abastado, enquanto um pobre coitado luta, há mais de dois anos, para provar que fora preso por engano; ouve o apresentador dizer que autoridades se servem de aviões da Aeronáutica para viagens de lazer, e logo notícia que na capital econômica do país faltam ambulâncias para transporte de doentes pobres; muda de canal e observa um galhardo delegado, do Mato Grosso, dando eficiente proteção a iguanas, sarigüês e jibóias, e, logo em seguida, ouve dizer que crianças foram assassinadas por traficantes, numa escola desprotegida do Jacarezinho. Fica sabendo que um pobre matuto do sertão foi preso, em flagrante delito, pela eficiente polícia florestal, porque cometeu o hediondo crime de matar duas juritis, para aplacar a fome dos seus filhos, enquanto um famoso craque do futebol foi apenas condenado a pagar cestas básicas, porque cometeu o chique delito de assassinar uma “nem tanto”, com seu luxuoso automóvel.  Assiste ao faz-de-conta das comissões, à mentira dos inquéritos, à banalização da atividade parlamentar, ao nepotismo de autoridades, ao escandaloso desvio de verbas públicas, reflete sobre sua condição e se convence que é cidadão, mas… “nem tanto”.

Fernando Guedes

2/3/2000

fev 1, 2000 - Poligrafia    No Comments

“Não tem remédio”!

Amídia tem-se ocupado, nos últimos meses, da polêmica que se criou em torno da fusão de duas companhias produtoras de cerveja, que o governo está dificultando, sob a suspeita de que essa fusão poderá redundar num cartel, que, abolindo a concorrência, poderá, no futuro, manipular o preço desse “líquido essencial”, prejudicando o consumidor. Conversa fiada! Isto é coisa de governo tupiniquim, que não sabe sequer conviver com o liberalismo econômico que tanto prega, e só o sabe praticar quando se põe a alienar, por preço vil, o patrimônio público, nesse desvairado programa de privatizações, que divulga como a salvação do país.

O inusitado nesse negócio foi a rapidez com que o governo se houve, determinando estudos e apurações, para interceptar a fusão, numa eficiência nunca vista, quando se trata de defender o consumidor. Prova-o a sua inércia em face da exorbitante elevação dos preços dos remédios – que parece bem supérfluo -, desde a implantação do real, para a qual ainda não foi capaz de dar à sociedade uma satisfação. Não me causa surpresa nenhuma essa inação do governo, como não me causa estranheza o seu silêncio diante das fusões de laboratórios farmacêuticos tão abundantes e rotineiras. No ano passado, a classe médica foi surpreendida por uma enxurrada dessas fusões, e tantas houve que os médicos já não sabiam a que laboratório pertencia a marca que prescreviam (aqui, salvo raríssimas exceções, os médicos prescrevem marcas). A última de que tomei conhecimento foi a da Hoechst Marion Roussel com a Rhodia Farma, que resultou na Aventis Pharma. Não se sabe se a Secretaria de Direito Econômico, que tanto tem fustigado o negócio da cerveja, ao menos verificou se essa Aventis vai ou não influenciar no preço dos remédios. É isso aí, cerveja é o que importa, como carnaval, futebol, bingo etc. Remédio, na lógica de quem nos governa (ou desgoverna, já nem sei) é somenos.

Também não me causa nenhuma estranheza a inutilidade das CPIs que se criaram na Congresso – consta que foram quatro até agora –, para investigar as circunstâncias da elevação dos preços dos remédios além da inflação, a responsabilidade da indústria farmacêutica, de redes de distribuidores e de farmácias, nesse processo. Não estranhei também a oposição incompreensível que a lei dos genéricos enfrentou durante sua tramitação no Congresso Nacional, e nem sei porque prodígio foi aprovada, com um atraso monumental, em relação a outros países que já possuem uma política de medicamentos genéricos, que atinge uma porcentagem considerável do mercado, capaz de atender às necessidades terapêuticas da população. Depois, tampouco estranhei a morosidade na ridícula liberação para o mercado de seis genéricos, porque tudo isso faz parte desse anacrônico sistema político-administrativo, que há mais de um século vem estiolando o país e corrompendo a nação. O que realmente me causa espécie é a atitude de colaboração do médico com a indústria farmacêutica, que passivamente deixou de prescrever farmacologicamente, para prescrever mercantilmente. Explico: ao invés de assentar na receita o nome do princípio ativo com o qual pretende tratar, assenta a marca registrada do laboratório de sua preferência. Era tudo o que a indústria farmacêutica precisava para conquistar o monopólio das marcas, e, conquistado esse feito, todo o seu trabalho consistiu na eficiente propagação delas, produzidas a mancheias, utilizando-se do médico como a mais importante peça desse inusitado mecanismo de propaganda, no qual o reclamo não se faz diretamente ao consumidor, que jamais fica sabendo porque consome a marca que lhe induzem comprar. É oportuno que se diga a verdade: esse sistema saí muito mais em conta para a indústria farmacêutica do que se pensa, porque ao invés de gastar fortunas com a mídia (ouço dizer que um minuto de televisão custa fortuna), utiliza-se do médico em troco de ninharias, porque é ele o alvo de sua propaganda, e seu preparo inicia no limiar da carreira, quando o acadêmico começa a sofrer o assédio dos laboratórios, que lhe distribuem amostras grátis de seus produtos, folhetos variados, brindes, monografias etc. Não é exagero afirmar que a farmacologia que se pratica depois não é a das lições dos tratados, mas a ensinada pelos representantes dos laboratórios. Depois de formado, o processo continua, e não pára mais…

Sem nenhum controle governamental, o mercado de medicamentos prosperou acintosamente, porque gente que falsificou alvará para depor o seu primeiro donatário, certamente não haveria de ter respeito pela saúde de ninguém: remédios inócuos e falsificados é coisa banal neste país, sem falar no segmento dos proibídos que aí está sem sofrer nenhum incômodo. Reportagem de televisão mostrou, na semana passada, como é fácil adquirir, de camelô, no centro do Rio de Janeiro, o misoprostol (Cytotec), contrabandeado do Paraguai.

Advertências à classe médica houve, e vêm de longe, dadas por figuras impolutas da Medicina brasileira, que lutaram contra o abuso do comércio de remédios. Dr. Carlos da Silva Lacaz, por exemplo, escreveu: “Estamos vivendo, infelizmente, em matéria de terapêutica médica, uma fase de verdadeira anarquia” e cita o eminente Professor Almeida Prado, que, em 1952, referia “não existir no mundo outro país em que o comércio de medicamentos medre mais viçosamente e mais sem peias do que aqui.” Aliás, não apenas Dr. Almeida Prado, mas de antes, Dr. Francisco de Castro, o divino mestre, que o antecedeu, em discurso de ocasião, na sua adotiva Faculdade de Medicina, combateu a proliferação desnecessária de medicamentos. Poderia, se quisesse, me alongar em citações, mas fico com essas três figuras que são simbólicas de uma medicina que já não existe, porque de lá para cá o processo de mercantilização da medicina tem sido tão perverso e danoso, que só prospera nela quem tiver propensão para negócio, e na medida que a ela se ajuntava, este colossal aparato tecnológico, com o qual hoje nos deparamos, que serve a poucos, dela se afastava o humanismo que a distinguia entre as demais áreas do conhecimento científico, a ponto que nunca foi tão atual a sentença de Voltaire: “os médicos se valem de medicamentos que pouco conhecem para curar doenças que conhecem menos ainda, em seres humanos dos quais nada sabem”. Quem devia resistir não o fez, por isto, como se diz no popular, “não tem remédio”!

Fernando Guedes

Fevereiro, 2000

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