jul 31, 2000 - Poligrafia    No Comments

Bajulação de Poder

Na história da nossa formação política, desde o período colonial, passando pelo império, até à república, é a bajulação de poder a regra predileta da elite burguesa que manipula a atividade política há 500 anos. Com o advento da república, que fora imposta como remédio para os males do império, e que logo se mostrou sem nenhum efeito terapêutico,  a bajulação de poder foi elevada a uma escala nunca vista na história das nações. Em todos os níveis desta absurda federação nominal, desde 1889 até aos dias atuais, os poderes, numa convivência promíscua, bajulam-se, tramam e engendram a infelicidade da nação: seca, fome, analfabetismo, endemias, violência, corrupção, roubo, desamparo, etc., tudo é responsabilidade deles, que se toleram na pantomima da bajulação. O legislativo bajula o executivo, que bajula o judiciário, que bajula o legislativo, num ciclo perverso, determinante da falência daquela autonomia pensada por Montesquieu e que faz a prosperidade das Repúblicas civilizadas.

Li, na Tribuna do Sertão, matéria sobre a concessão, pela Câmara de Riacho de Santana, de título de Cidadão Honorário ao juiz de direito daquela comarca. Noticiou o periódico que o projeto de lei fora apresentado por um vereador da situação e aprovado pela unanimidade da Câmara, e que, na sessão solene de entrega ao magistrado do seu título, o representante do executivo, na sua oração, declinou os motivos que levaram à outorga daquela distinção honorária: a simplicidade e imparcialidade com que o magistrado se conduz na apreciação dos feitos sob responsabilidade de julgar.

Que vem a ser cidadão honorário? Não importa o que diz a lei na qual se basearam os vereadores riachenses, se nela não figurar a correta definição. Vamos por partes. Cidadão possui três acepções: o que pertence à cidade; aquele que goza dos direitos civis e políticos num estado; o indivíduo considerado no desempenho dos seus deveres como membro de um estado. Honorário é: que dá honras e não proveitos materiais. Por conseguinte, cidadão honorário, no particular, é aquele que, não pertencendo à cidade, a ela se incorporou espiritualmente, em face de uma atuação profícua em seu favor, que produziu obras ou lhe prestou serviços relevantes.

Investiguei e não divisei nenhuma obra, em favor da cidade, realizada pelo magistrado, no curto tempo que assumiu, como juiz titular, a comarca de Riacho de Santana. Consta que apenas cumpriu, com probidade, os deveres do seu mister, para o qual é estipendiado pelo erário.

Não admira que a situação se comportasse da maneira que se comportou na outorga desse título, afinal manter-se na situação, nesta República loteada, é exercer, com maestria, a arte da bajulação. Mas, a aprovação da oposição nesta matéria é de uma incoerência imperdoável, pois quem colabora com bajuladores, também bajula, e, se bajula, não merece confiança.

Justificar o título argüindo o magistrado de imparcial, como atributo extraordinário, que mereça distinção honorária, é absurdo que não se pode tolerar. Afinal, imparcialidade é atributo fisiológico da magistratura, portanto inerente a ela, próprio dela. É a sua própria natureza.

De mim, ouso dizer que, se a pessoa do magistrado aceitou, por urbanidade e educação, a imerecida honraria, para não melindrar a sua convivência com a comunidade riachense, que os vereadores dizem representar, não vejo nenhuma inconveniência, porque o ridículo é da classe política; mas, o perigo subliminar, que sob o manto da honra se alaparda, é o constrangimento da autoridade, pelas extravagâncias dessa mesma classe, que no Brasil está longe de ter juízo.

Consta que o magistrado, na sua oração, remeteu a honra à magistratura baiana, para dissipar a atmosfera de constrangimento. Eu, aqui presto, à magistratura universal, uma homenagem evocando o nome de Anfilófio Botelho Freire de Carvalho, o juiz integral, que, em caso semelhante de condecoração, o escrúpulo do juiz julgou-a indevida, repelindo, com energia, a investida dos bajuladores, advertindo-os seriamente.

Da classe político, infelizmente, não me ocorre exemplo para citar, nem acho que ela mereça homenagem.

Fernando Guedes

Julho/2000

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