fev 1, 2000 - Poligrafia    No Comments

“Não tem remédio”!

Amídia tem-se ocupado, nos últimos meses, da polêmica que se criou em torno da fusão de duas companhias produtoras de cerveja, que o governo está dificultando, sob a suspeita de que essa fusão poderá redundar num cartel, que, abolindo a concorrência, poderá, no futuro, manipular o preço desse “líquido essencial”, prejudicando o consumidor. Conversa fiada! Isto é coisa de governo tupiniquim, que não sabe sequer conviver com o liberalismo econômico que tanto prega, e só o sabe praticar quando se põe a alienar, por preço vil, o patrimônio público, nesse desvairado programa de privatizações, que divulga como a salvação do país.

O inusitado nesse negócio foi a rapidez com que o governo se houve, determinando estudos e apurações, para interceptar a fusão, numa eficiência nunca vista, quando se trata de defender o consumidor. Prova-o a sua inércia em face da exorbitante elevação dos preços dos remédios – que parece bem supérfluo -, desde a implantação do real, para a qual ainda não foi capaz de dar à sociedade uma satisfação. Não me causa surpresa nenhuma essa inação do governo, como não me causa estranheza o seu silêncio diante das fusões de laboratórios farmacêuticos tão abundantes e rotineiras. No ano passado, a classe médica foi surpreendida por uma enxurrada dessas fusões, e tantas houve que os médicos já não sabiam a que laboratório pertencia a marca que prescreviam (aqui, salvo raríssimas exceções, os médicos prescrevem marcas). A última de que tomei conhecimento foi a da Hoechst Marion Roussel com a Rhodia Farma, que resultou na Aventis Pharma. Não se sabe se a Secretaria de Direito Econômico, que tanto tem fustigado o negócio da cerveja, ao menos verificou se essa Aventis vai ou não influenciar no preço dos remédios. É isso aí, cerveja é o que importa, como carnaval, futebol, bingo etc. Remédio, na lógica de quem nos governa (ou desgoverna, já nem sei) é somenos.

Também não me causa nenhuma estranheza a inutilidade das CPIs que se criaram na Congresso – consta que foram quatro até agora –, para investigar as circunstâncias da elevação dos preços dos remédios além da inflação, a responsabilidade da indústria farmacêutica, de redes de distribuidores e de farmácias, nesse processo. Não estranhei também a oposição incompreensível que a lei dos genéricos enfrentou durante sua tramitação no Congresso Nacional, e nem sei porque prodígio foi aprovada, com um atraso monumental, em relação a outros países que já possuem uma política de medicamentos genéricos, que atinge uma porcentagem considerável do mercado, capaz de atender às necessidades terapêuticas da população. Depois, tampouco estranhei a morosidade na ridícula liberação para o mercado de seis genéricos, porque tudo isso faz parte desse anacrônico sistema político-administrativo, que há mais de um século vem estiolando o país e corrompendo a nação. O que realmente me causa espécie é a atitude de colaboração do médico com a indústria farmacêutica, que passivamente deixou de prescrever farmacologicamente, para prescrever mercantilmente. Explico: ao invés de assentar na receita o nome do princípio ativo com o qual pretende tratar, assenta a marca registrada do laboratório de sua preferência. Era tudo o que a indústria farmacêutica precisava para conquistar o monopólio das marcas, e, conquistado esse feito, todo o seu trabalho consistiu na eficiente propagação delas, produzidas a mancheias, utilizando-se do médico como a mais importante peça desse inusitado mecanismo de propaganda, no qual o reclamo não se faz diretamente ao consumidor, que jamais fica sabendo porque consome a marca que lhe induzem comprar. É oportuno que se diga a verdade: esse sistema saí muito mais em conta para a indústria farmacêutica do que se pensa, porque ao invés de gastar fortunas com a mídia (ouço dizer que um minuto de televisão custa fortuna), utiliza-se do médico em troco de ninharias, porque é ele o alvo de sua propaganda, e seu preparo inicia no limiar da carreira, quando o acadêmico começa a sofrer o assédio dos laboratórios, que lhe distribuem amostras grátis de seus produtos, folhetos variados, brindes, monografias etc. Não é exagero afirmar que a farmacologia que se pratica depois não é a das lições dos tratados, mas a ensinada pelos representantes dos laboratórios. Depois de formado, o processo continua, e não pára mais…

Sem nenhum controle governamental, o mercado de medicamentos prosperou acintosamente, porque gente que falsificou alvará para depor o seu primeiro donatário, certamente não haveria de ter respeito pela saúde de ninguém: remédios inócuos e falsificados é coisa banal neste país, sem falar no segmento dos proibídos que aí está sem sofrer nenhum incômodo. Reportagem de televisão mostrou, na semana passada, como é fácil adquirir, de camelô, no centro do Rio de Janeiro, o misoprostol (Cytotec), contrabandeado do Paraguai.

Advertências à classe médica houve, e vêm de longe, dadas por figuras impolutas da Medicina brasileira, que lutaram contra o abuso do comércio de remédios. Dr. Carlos da Silva Lacaz, por exemplo, escreveu: “Estamos vivendo, infelizmente, em matéria de terapêutica médica, uma fase de verdadeira anarquia” e cita o eminente Professor Almeida Prado, que, em 1952, referia “não existir no mundo outro país em que o comércio de medicamentos medre mais viçosamente e mais sem peias do que aqui.” Aliás, não apenas Dr. Almeida Prado, mas de antes, Dr. Francisco de Castro, o divino mestre, que o antecedeu, em discurso de ocasião, na sua adotiva Faculdade de Medicina, combateu a proliferação desnecessária de medicamentos. Poderia, se quisesse, me alongar em citações, mas fico com essas três figuras que são simbólicas de uma medicina que já não existe, porque de lá para cá o processo de mercantilização da medicina tem sido tão perverso e danoso, que só prospera nela quem tiver propensão para negócio, e na medida que a ela se ajuntava, este colossal aparato tecnológico, com o qual hoje nos deparamos, que serve a poucos, dela se afastava o humanismo que a distinguia entre as demais áreas do conhecimento científico, a ponto que nunca foi tão atual a sentença de Voltaire: “os médicos se valem de medicamentos que pouco conhecem para curar doenças que conhecem menos ainda, em seres humanos dos quais nada sabem”. Quem devia resistir não o fez, por isto, como se diz no popular, “não tem remédio”!

Fernando Guedes

Fevereiro, 2000

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