mar 24, 2011 - Poligrafia    1 Comment

Voto que salvou a Constituição

Medo, venalidade, paixão partidária, respeito pessoal, subserviência, espírito conservador, interpretação restritiva, razão de estado, interesse supremo, como quer te chames, prevaricação judiciária, não escaparás ao ferrete de Pilatos! O bom ladrão salvou-se. Mas não há salvação para o juiz cobarde.

Rui Barbosa, in O justo e a justiça política

 

 

á opinei antes sobre a “lei da ficha limpa”, o que poderia me dispensar de tornar ao assunto, se não fosse o fato novo trazido pelo voto do ministro Luiz Fux, que merece, da minha precária pena, algumas palavras…

Caberia nesta minha pretensão o artigo Gol de Fux, que Eliane Cantanhêde publicou na edição de hoje da Folha de São Paulo. Com a precisão que faltou a certos juristas midiáticos e a juízes covardes, a conceituada jornalista sentenciou: “doeria mais se Fux jogasse às favas os escrúpulos de consciência e a letra da lei em favor de aplausos e dos elogios”. De mim, acho que o ministro lera, antes de redigir seu voto, O justo e a justiça política, de Ruy Barbosa…

Assisti ontem à seção do Supremo Tribunal Federal, com grande expectativa no voto do ministro Fux, no julgamento do Recurso Extraordinário 633703. Nunca o tinha visto falar, nunca passara pelas minhas mãos um texto de sua autoria, o que aguçou no meu espírito certo ar de incerteza. Como pode um Juiz de Tribunal Constitucional, na vigência do Estado Democrático de Direito, votar à revelia da Constituição, para atender ao apelo popular? Daria Dr. Fux voto a serviço desse desatino jurídico? Eis a minha dúvida, que logo se dissipou ao perceber que Sua Excelência não estava ali senão para garantir a aplicação da Constituição, e sua conduta de juiz imparcial se revelou, para mim, nesta frase, que proferiu com convicta segurança: “Nem o melhor dos direitos pode ser aplicado contra a Constituição”, senha para uma Senadora, beneficiária colateral da insegurança jurídica criada pela aplicação extemporânea dessa lei, deixar o recinto do STF…

O voto do ministro relator, Gilmar Mendes, malgrado as criticas que se lhe façam, foi uma peça jurídica que merecerá publicação em separado, para os pósteros, pelo denso conteúdo jurídico apresentado, pela apurada análise jusfilosófica que fez, pela sua profunda visão de direito comparado, enfim uma peça tecnicamente irrefutável. Seguiu-se, ao voto do relator, o do ministro Fux, que leu um texto conciso, focado no objetivo da causa, sem aquelas digressões pedantes, direto no alvo constitucional: a anualidade e a segurança jurídica. Não era preciso dizer mais nada!

Manda a Constituição que “a lei que alterar o processo eleitoral entrará em vigor na data de sua publicação, não se aplicando à eleição que ocorra até um ano da data de sua vigência”, norma que cinco ministros ignoraram, votando pela aplicação da “lei da ficha limpa”, editada em 7 de junho de 2010, às eleições de outubro de 2010. Estranhas, para ficar com um adjetivo maneiro, foram suas argumentações, a fazer jus a essa justiça invadida pela política, joguete da multidão, escrava de César, como disse Ruy no artigo citado.

Desapontados com a atuação independente do novato, os cinco não conseguiram disfarçar sua frustração, captada pela indiscrição das lentes da bendita TV Justiça. Constrangidas eram as fácies…

Estes meus olhos uns viram coisas que jamais imaginei ver numa seção de julgamento de um Tribunal Constitucional. Discursos moralizadores, apologia da ética política, defesa da probidade administrativa, inquietação com as centenas emails de pessoas preocupadas com o resultado do julgamento, afirmação de que aquele julgamento era uma opção entre anualidade e a probidade administrativa, como se julgar fosse preferir uma norma à outra; num reducionismo catastrófico, afirmar-se que os que julgavam pela observância da Constituição estivessem optando pela improbidade administrativa. Fitos nessas superficialidades dispensáveis, não deram a mínima atenção à Constituição, cujo descumprimento parecia não os incomodar. Aliás, as replicas ásperas denunciavam a causa do seu incômodo: a possibilidade do cumprimento artigo dezesseis da Constituição, trazida pelo voto de ministro novato.

Repetindo-se, o ministro César Peluso reafirmou: “um tribunal constitucional que atende aos anseios legítimos do povo, à revelia da Constituição, é um tribunal no qual nem o povo deve confiar”. Além de sustentar, com clareza, o princípio da anualidade e da segurança jurídica, abordou, com precisão jurídica, seu repúdio pela retroatividade prejudicial, que nem o regime de exceção ousou cometer. Lei que retroage para alcançar ato consumado no passado, para atribuir-lhe conseqüência jurídica no presente, não deve merecer sequer qualificativo de lei, disse, mutatis mutandis, Sua Excelência.

Evidente que nenhum ministro do STF é contra a moralização dos costumes políticos; nenhum nega a conveniência da probidade dos candidatos; nenhum é contra a inelegibilidade de criminosos, porém moralidade, probidade ou inelegibilidade não deve ser justificativa para a aplicação de lei que contraria a Constituição. Foi como votou o ministro Fux, o voto que salvou a Constituição.

Fernando Guedes

24/3/2011

 

1 Comment

  • Prezado Fernando, boa noite.

    Seu amigo, que ora se pronuncia, mesmo fazendo parte dos que pretenderam se doar (sem ter obtido êxito), pela nobre causa de representar dignamente os interesses populares, disputando campanhas políticas de forma limpa e com ficha limpa, de firmeza ética inabável e incontestável, que você conhece, registra que tem gravado, em um vídeo, uma entrevista onde afirma: ” as eleições têm que se realizar com obediência ao princípio da anterioridade da Lei; quaisquer mudança nas regras eleitorais, depois de 03 de dezembro de 2009, não podem ser aplicadas nas eleições de 2010, pois representaria uma insegurança jurídica perigosa e inaceitável” (as palavras não foram exatamente estas mas o sentido sim, em entrevista na TV, em Natal-RN, no mês de abril de 2010).

    Portanto, aplausos para o Ministro Fux e parabéns pelo Artigo.

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