jul 27, 2011 - Poligrafia    7 Comments

Um dia no Rio…

Eu acho que se trabalha demais no mundo de hoje, que a crença nas virtudes do trabalho produz males sem conta e que nos modernos países industriais é preciso lutar por algo totalmente diferente do que sempre se apregoou.

Bertrand Russell, in O Elogio ao Ócio

 

Estou, novamente, neste Rio de São Sebastião, sentindo a parte que me cabe do largo abraço do Redentor… Contemplo-o, sempre, lá no seu soberbo pedestal, o Corcovado!

Às oito sai da Senador Dantas, ali na Cinelândia, rumo ao trabalho, na Graça Aranha. Passando pela Santa Luzia, detenho um pouco os passos para uma reverência àquele número 54, onde outrora viveram, por três anos, Machado e Carolina… São desse período Histórias da meia-noite, Falenas, Ressurreição e A mão e a luva. Faço a reverência e lá me vou, imaginando o centro do Rio do tempo do Bruxo do Cosme Velho… Passo entre os pilots do Palácio Capanema com atenção redobrada, para admirar aquele ícone da nossa corbuseana arquitetura moderna. Contemplo os azulejos de Portinari, as esculturas de Giorgi, Lipchltz e Menezes, testemunhas de uma época em que havia homens preocupados com educação e cultura…

No trabalho, cumpro a minha obrigação funcional, estoicamente, sem, contudo, me comprometer ao ponto de achar que é a coisa mais importante da vida. Recuso-me em admitir o trabalho como um fim, como um valor. Não é… Não o será! Um valor é o que vale por si só. Como o amor, a generosidade, a justiça, a liberdade… Para amar, quanto você cobra? Já não seria amor, seria prostituição. Para ser generoso, justo, livre, precisam lhe pagar? Já não seria generosidade, mas egoísmo, já não justiça, mas comércio, já não liberdade, mas servidão. Para trabalhar? Você cobra alguma coisa e evidentemente tem razão; aliás, quase sempre acha insuficiente o que lhe dão (sim, não é um dom, é uma troca), o que está registrado no seu holerite, contracheque, recibo ou nota de serviços… Há um mercado de trabalho, submetido, como qualquer mercado, à lei da oferta e da procura. Como trabalho pode ser um valor se está à venda? (André Comte-Sponville). O trabalho é somente um meio, tedioso muitas vezes, mas somente um meio, necessário à sobrevivência. Somente para sobreviver o trabalho é necessário. Para viver e conviver ele é dispensável, porque são necessários outros atributos, onde ele não colabora. Idolatrá-lo, longe de mim, que escuto o Redentor advertir, lá da montanha: – “Mandei que amassem uns aos outros, não que trabalhassem uns e outros”!

Quando saímos para o almoço já passava do meio-dia, como é a praxe aqui, onde se “ama” o trabalho e a ele se apega como um fim… Eu, Sérgio, Maurício, Paulo e Ailton, este numa estica à Zegna, com aquela gravata estreita combinando com o terno talhado à italiana, fomos ao Clube Ginástico Português, ali perto, para um almoço à portuguesa, no Da Silva.

Foi um deleite para o gosto: caçarola de cordeiro, leitão à Bairrada, bacalhau, dobrada a moda do Porto e já não sei o que mais… Pedi uma taça de Vila do Convento que, ao primeiro gole, provocou-me evocações do Alentejo… de sua Princesa: a Sé, mais rica jóia, de cujo zimbório central disse Martim Hume que valia a pena vir de Inglaterra a Portugal só para vê-lo; a praça de Geraldo Sem-Pavor, a Fonte Coroada, a Igreja de Santo Antão, seus Conventos, suas ruínas, o asseio de suas ruas, suas laranjeiras…Évora! Alentejo! Como são lindos seus campos e suas ceifeiras…

Ceifeira que anda à calma

No campo ceifando o trigo

Ceifa as pena da minh´alma

Ceifa-as e eleva-as contigo…

Para completar o deleite gastronômico, os doces: toucinho do céu, sericaia (ou siricaia, feito pelo método tradicional, que tia Tide – Matilde Castro – dominava com esmero, é o que se pode chamar de “Manjar dos Deuses”), encharcada, clara de Évora, travesseiro de Sintra, pudim de Vinho do Porto… Delícias de origem conventual, por várias causas, que vale a pena lembrar. Primeiro, conventos de freiras, mulheres a quem os doces eram familiares. Depois, meter freira em convento era, às vezes, abastado, e além do dote, elas, as filhas de ricos-homens, lá iam com suas escravas, e, estas, quituteiras, se entretinham na fábrica dos doces. Doces a oferecer a prelados e a grandes do mundo, nos oiteiros e saraus, à cerca dos conventos, onde concorriam poetas e mariolas, devoradores de doces (Afrânio Peixoto). O elemento predominante nos doces é o açúcar, que adoçou tantos aspectos da vida brasileira que não se pode separar dele a civilização nacional. Deu-nos as sinhás de engenho. As mulatas dengosas. Os diplomatas maneirosos (…) Os políticos baianos – os mais melífluos e finos do Brasil. A toada dos cambiteiros. Os cantos das almanjarras… (Gilberto Freire). Comi de todos, porque, com tal santa origem, não cometeria o sacrilégio de ignorá-los… Os outros, que andam aliciados por essa cultura da “alimentação saudável”, ficaram com as frutas… Entre quatro sacrílegos, par equilibrar a turma, um baiano devoto! Tomamos café, pagamos a conta e nos retiramos… Descemos pelas escadas, observando a suntuosidade decadente o prédio, mas sem deixar de imaginar o que fora aquele recinto em décadas passadas…

Todo esse deleite cultural-gastronômico foi completado, na volta, com um espetáculo muito carioca, ao vivo, sem cortes, sem edições… Ao atravessar a Almirante Barroso, o clima instável fez bater um pé-de-vento que levantou a saia de uma incógnita apreciável… Não era dessas esquálidas, insossas, que só têm, para mostrar, rotulas e protuberosidades ósseas… Aquela não, tinha com que cobri-las, porque era naturalmente esculpida, esteticamente modelada… A minúscula calcinha estampada deixava-lhe as nádegas livres, que tremulavam impudentes, como um pendão nacional que ao vento tripudia… Ela não se importou com o vento… Não segurou a saia, seguiu impávida, com a certeza de que era admirada!

Aquietou o vento fazendo a saia ocultar aquela natureza viva, como o pintor cobre, na oficina, com um véu, sua natureza morta inacabada… Cruzamos a porta giratória da Torre Almirante, para continuar a rotina do trabalho…

 

Fernando Guedes

Rio de Janeiro, 18/7/2011

 

7 Comments

  • O Rio é o Rio, e ponto final!!!!!!11

  • Voltarei ao Rio,assim que o trabalho me permitir… 😉

  • Êh saudade dessa cidade linda e cheia de encantos…
    Lendo seu post fiquei imaginando todo o trajeto…as conversas, os comentarios (principalmente no ocorrido do pé de vento, risos).
    Bjos

  • Olá Fernando,

    Permita-me comentar sobre este seu texto.

    Morei no Rio de Janeiro por 3 anos mas confesso que naquela ocasião eu era uma pessoa que atribuía ao trabalho um valor exagerado. Conheci o referido restaurante mas não tinha desapego suficiente para admirá-lo, como hoje eu procuro admirar e experimentar os diversos lugares que visito.

    Com a questão do trabalho vem o Tempo e o relógio. Medida e ferramenta que nos atormentam pois deixamos que tomem conta de nós. Essa combinação de trabalho, tempo e relógio imprime às nossas vidas males sem conta.

    Também, é engraçado relembrar como tentamos tomar posse daquilo que não nos pertence no trabalho. Na empresa, é comum um gerente, um diretor dizer coisas do tipo: “meu time”; “meu orçamento, ou budget para ficar mais no jargão corporativo”; etc. Certa ocasião, perguntei ao meu gerente o seguinte: – se você for demitido hoje, poderá levar consigo o “seu time” e o “seu budget”? Espantado, respondeu-me um tanto quanto constrangido: – claro que não. Então eu disse: – ok. Portanto, recomendo que exercite o desprendimento em relação a isso, pois não lhe pertence. Estão apenas sob sua responsabilidade, no momento.

    Com tudo isso que deixamos nos atormentar e nos conduzir, vivemos uma vida desgovernada, ou melhor, vivemos uma vida governada pelos outros.

    O foco excessivo que damos ao trabalho e ao tempo limita nossa capacidade de regozijarmos com uma simples caminhada, com um bom almoço com amigos queridos, com a beleza de uma cidade que já não existe mais e, também, com a visão encantadora de nádegas livres estampadas por uma minúscula calcinha, que graças ao vento que nem percebemos mais, são expostas para o nosso entretenimento.

    “Quando Experimentamos continuamente as mesmas emoções e não elaboramos algo sobre elas, então estamos presos no mesmo padrão de estímulo/resposta”
    – Joe Dispenza, em Quem Somos Nós?

    Sandro Alves
    Recife – Pernambuco

  • Prezado Fernando Guedes,
    Seu “Um dia no Rio…” é magnífico, porem como não me cabe apenas elogiar faço um pequeno comentário sobre a parte que se refere a trabalho.
    A advertência que você ouviu num sussurro muito particular: “Mandei que vos amassem uns aos outros, não que trabalhassem uns e outros”, deveria ser escutada após o opíparo deleite gastronômico no “Da Silva”, e não antes.
    Em plenitude pós-prandial – vulgo “barriga cheia – é fácil ouvir o “amai-vos uns aos outros”. No entanto muito antes do Redentor, Jeová, o Pai dele e nosso, disse-o de outra maneira em Gênesis 3 ao expulsar do Éden nossos mais longevos ancestrais após o dito banquete de apenas maçãs
    Será que as bem-aventuranças bíblicas deveriam ser acrescidas de “Felizes os que consideram o trabalho somente um meio, tedioso muitas vezes, mas somente um meio necessário para sobrevivência”?
    Minha opinião é que com isto foi tripudiada, ou simplesmente esquecida com menosprezo, a imagem do peão sofredor, que com suas lides, arranca seu sustento às custas de muito suor, lágrimas e/ou canseiras, eventualmente também sangue.
    No mais além de minha miscelânea bíblia x blog tenho a enaltecer um primoroso trabalho feito sob inspiração de um peripatético sentimento advindo de uma folga entre entediantes turnos de trabalho – o chato. Nada mais justo e meritório que esta sua obra “Um dia no Rio…” fosse merecedora de insigne laurel outorgado pela Sociedade Brasileira de Médicos Escritores, na ABM.

    Abraço.

    José Magnavita

    • Magnavita,

      Claro que acato a crítica do seu comentário. Esclareço, entretanto, que ouço o Redentor logo que acordo e o vejo da janela do hotel, com a barriga ainda vazia… Divergimos quanto ao trabalho, que, para mim, é, depois das bactérias e vírus, o fator de adoecimento a que se expõe a humanidade. Não seria medico do trabalho se não admitisse isto. Estou me referindo ao trabalho formal ou formalizado, embutido nas linhas de um contrato, a serviço do lucro de que o explora. Não falo do trabalho livre, que produz satisfação, o daquele colega que executou ao violão Cabecinha no ombro e Smile, que o velou a cantarolar a canção… Fê-lo livremente, por satisfação. Não falo desse trabalho, falo do outro, que é uma salvação, para os perdidos; uma terapia, paras os loucos; uma esperança, para os infelizes. Para os outros ele deve ser o que é: uma obrigação, como me ensinou Sponville.

      Obrigado pelo comentário.

      Fernando

  • Na crônica Um dia no Rio, Fernando Guedes (re) constrói criativamente a Cidade Maravilhosa a partir da sua identificação com as coisas que “estão dentro da vida carioca”. Percorrendo a cidade, através do olhar de quem se reconhece parte dela, o cronista, tal qual Drummond, Cecília, João do Rio, dentre outros, capta os sinais da vida que diariamente o morador do Rio deixa escapar. Porta-voz de todos os cidadãos, Fernando Guedes vai revelando ao leitor, numa linguagem altamente poética, imagens de uma cidade multifacetada cuja realidade muitas vezes sufoca. Da leitura de textos como esse o Rio renasce e a sua história alcança eternidade.

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