set 25, 2009 - Poligrafia    8 Comments

Profunduras…

Quando os espanhóis, no século XVI, chegaram a certo rincão, da América Central, tiveram imensa dificuldade para ancorar seus navios, em face das profunduras daquelas costas. Daí, uma versão para o topônimo: Honduras…

Não sou quem busca a aproximação, ela é se me apresenta: o Brasil, metendo-se, desnecessariamente, na atual crise política Honduras, está com grande dificuldade para ancorar, nas honduras dessa mesma crise, o insensato batel de sua diplomacia…

Na sua genial História da Educação Afrânio Peixoto escreveu: “Se for citar a lista de tiranos, ditadores, caudilhos da América Latina seriam páginas e páginas. As “constituições” se sucedem, os “pronunciamentos” também. São todas essas nações, por ineducação, democracias nominais, anárquicas, rebeldes, turbulentas, que mal sabem aproveitar as riquezas naturais, por isso pobres, oneradas de dívidas, vergadas ao fisco para sustentar exércitos e marinhas ineficientes, já empenhada a independência de muitas aos empréstimos externos, que outras não pagarão jamais…” A atualidade dessas palavras bastaria para orientar a minha argumentação, mas, há mais: “A história da América Latina é uma ladainha de caudilhos, tiranos, bandidos, em que os Rosas, Frâncias, Melgarejos, Porfírios Dias… se sucedem trágicos e ridículos, sanguinários e vorazes, às vezes místicos.” Desnecessário atualizar esse rol, não nos esqueçamos, porém, que a Pátria amada faz parte da América Latina…

A profundeza dessa crise convive com uma antinomia insólita: a superficialidade das análises que se lhe fazem jornalista e cientistas políticos, que insistem em divulgar a versão de golpe de Estado. Tenho para mim que não leram a Constituição de Honduras e, muito menos, os documentos do Processo, disponíveis do sítio eletrônico da Corte Suprema de Justiça (www.poderjudicial.gob.hn), ou agem deliberadamente de má fé.

Mas, afinal, que reza essa Constituição, que eles nunca citam? Ipsis litteris, isto:

1) Obrigatoriedade de alternância no exercício da Presidência da República (Artigo 4: La alternabilidad en el ejercicio de la Presidencia de la República es obligatoria. La infracción de esta norma constituye delito de traición a la Patria);

2) A Presidência só pode ser exercida por um quatriênio (Artigo 237: El período presidencial será de cuatro años y empezará el veintisiete de enero siguiente a la fecha en que se realizó la elección);

3) Só é permito ser Presidente uma vez na vida e perde o cargo quem tentar alterar essa disposição (Artigo 239: El ciudadano que haya desempeñado la titularidad del Poder Ejecutivo no podrá ser Presidente o Designado. El que quebrante esta disposición o proponga su reforma, así como aquellos que lo apoyen directa o indirectamente, cesarán de inmediato en el desempeño de sus respectivos cargos, y quedarán inhabilitados por diez años para el ejercicio de toda función pública);

4) Na falta do Presidente de Presidente da República, assume o Presidente do Congresso e, na falta deste, o Presidente da Suprema Corte (Artigo 242: Si la falta del Presidente fuere absoluta, el Designado que elija al efecto el Congreso Nacional ejercerá el Poder Ejecutivo por el tiempo que falte para terminar el período constitucional. Pero si también faltaren de modo absoluto los tres designados, el Poder Ejecutivo será ejercido por el Presidente del Congreso Nacional, y a falta de este último, por el Presidente de la Corte Suprema de Justicia por el tiempo que faltare para terminar el período constitucional);

5) Somente o Congresso Nacional pode propor reforma à Constituição (Artigo 373: La reforma de esta Constitución podrá decretarse por el Congreso Nacional, en sesiones ordinarias, con dos tercios de votos de la totalidad de sus miembros. El decreto señalará al efecto el artículo o artículos que hayan de reformarse, debiendo ratificarse por la subsiguiente legislatura ordinaria, por igual número de votos, para que entre en vigencia);

6) É vedada a reformada da disposição que veda a reeleição (Artigo 374: No podrán reformarse, en ningún caso, el artículo anterior, el presente artículo, los artículos constitucionales que se refieren a la forma de gobierno, al territorio nacional, al período presidencial, a la prohibición para ser nuevamente Presidente de la República, el ciudadano que lo haya desempeñado bajo cualquier título y el referente a quienes no pueden ser Presidentes de la República por el período subsiguiente.);

7) O Chefe das Forças Armadas não é nomeado pelo Poder Executivo (Artigo 279: El Jefe de las Fuerzas Armadas deberá ser un oficial General o Superior con el grado de Coronel de la Armas o su equivalente, en servicio activo, hondureño de nacimiento y será elegido por el Congreso Nacional de una terna propuesta por el Consejo Superior de las Fuerzas Armadas. Durará en sus funciones cinc años y sólo podrá ser removido de su cargo por el Congreso Nacional, cuando hubiere sido declarado con lugar a formación de causa por dos tercios de votos de sus miembros; y en los demás casos previstos por la ley Constitutiva de las fuerzas Armadas.).

Ora, se el ciudadano que haya desempeñado la titularidad del Poder Ejecutivo no podrá ser Presidente o Designado, se La infracción de esta norma constituye delito de traición a la Patria , se El que quebrante esta disposición o proponga su reforma, así como aquellos que lo apoyen directa o indirectamente, cesarán de inmediato en el desempeño de sus respectivos cargos, y quedarán inhabilitados por diez años para el ejercicio de toda función pública, não há como o Presidente da República, em Honduras, voltar ao posto, em outro mandato, na vigência do Estado de Direito.

Era mister alterá-lo, com o disfarce da legalidade, através de uma reforma constitucional, e foi exatamente isto que o Sr. Zelaya intentou: criar as condições de um segundo mandato à revelia da Constituição.  A isto, que a diplomacia brasileira não considera, o Congresso e a Suprema Corte de Honduras consideraram delito de traición a la Pátria. Veja, prezado leitor, neste compêndio, a seqüência dos fatos:

23/3/2009 Sr. Manuel Zelaya emite Decreto Executivo (PCM-05-2009) estabelecendo uma consulta popular, para convocação de Assembléia Constituinte, para elaborar uma nova Constituição.
08/5/2009 O Ministério Público ajuizou, perante o Juzgado de Letras del Contencioso Administrativo, ação pleiteando a nulidade do Decreto Executivo (PCM-05-2009). Requereu, como tutela antecipada, a nulidade dos sues efeitos.
27/5/2009 O Juzgado de Letras del Contencioso Administrativo ditou sentença interlocutória ordenado a suspensão do Decreto Executivo (PCM-05-2009).
29/5/2009 Por requerimento do Ministério Público, o Juzgado de Letras del Contencioso Administrativo aclarou e reiterou a sentença proibitória.
03/6/2009 O Juzgado de Letras del Contencioso Administrativo emitiu a 1ª. Comunicação Judicial ao Presidente da República, por meio do Secretário de Estado, cobrando o cumprimento da sentença interlocutória de 27/5/2009, com sua respectiva aclaração de 29/5/2009.
16/6/2009 A Corte de Apelações do Contencioso Administrativo, por unanimidade de votos, em nome do Estado de Honduras, declarou inadmissível a Ação de Amparo interposta pelo Advogado René Velásquez Diaz, a favor de Manuel Zelaya.
18/6/2009 O Juzgado de Letras del Contencioso Administrativo emitiu a 2ª. Comunicação Judicial ao Presidente da República cobrando o cumprimento da sentença interlocutória de 27/5/2009, com sua respectiva aclaração de 29/5/2009.
18/6/2009 O Juzgado de Letras del Contencioso Administrativo emitiu a 3ª. Comunicação Judicial ao Presidente da República cobrando o cumprimento da sentença interlocutória de 27/5/2009, com sua respectiva aclaração de 29/5/2009.
24/6/2009 O Presidente da República destituiu ilegalmente, do cargo de Chefe do Estado Maior Conjunto das Forças Armadas, o Sr. Romero Orlando Vásquez Velásquez.
25/6/2009 A Sala Constitucional da Corte Suprema de Justiça, por unanimidade de votos, emitiu resolução, em Ação de Amparo, anulando o ato ilegal do Presidente da República.
26/6/2009 A Suprema Corte de Justiça acatou denúncia do Ministério Público contra Manuel Zelaya, a quem acusa de autoria dos delitos contra a Forma de Governo, Traição da Pátria, Abuso de Autoridade e Usurpação de Funções, e nomeou o Magistrado instrutor.
26/6/2009 A requerimento do Ministério Público, o Juzgado de Letras del Contencioso Administrativo emitiu ordem às Forças Armadas, em face da desobediência do Presidente da República, para suspender qualquer atividade relacionada com a consulta que ele insistia em realizar a 28/6/2009.
26/6/2009 Pelo Ofício PCSJ-451-2009, o Presidente do Conselho Judicial Centroamericano e da Corte Suprema de Honduras comunicou aos Presidente das Supremas Cortes de Justiça membros desse Conselho (Guatemala, El Salvador, Nicarágua, Costa Rica, Panamá, Belice, República Dominicana, as atuações da Corte Suprema de Honduras.
29/6/2009 A Corte Suprema de Justiça transferiu o processo para o Juzgado de Letras Penal Unificado, que expediu o Mandado de Captura do réu.

Está claro que as Forças Armadas não depuseram o presidente, como aqui ocorreu, por exemplo, com o Sr. João Goulart. Aqui, as Forças Armadas interromperam a ordem constitucional e implantaram uma ditadura. Lá, o Sr. Zelaya foi deposto, pelo Congresso e pela Suprema Corte, em socorro à Ordem Constitucional. Mas, parece, desobediência à Constituição, nestas bandas, é somenos… Aqui já são 8 as da nossa desvairada coleção, sendo que a última, com apenas 21 anos de vigência, ainda não totalmente regulamentada, já sofreu mais de 50 emendas! Honduras devia ser exaltada por depor, dentro do processo legal, um agressor da Constituição. Não o substituiu um chefe ou uma junta militar. Assumiu o seu substituto constitucional, o Presidente do Congresso, que por sinal pertence ao mesmo partido do Sr. Zelaya.

Na há negar, contudo, a imagem, que não desconsiderarei: prender, de pijamas, um presidente civil, parece, somente, um golpe militar. Isto, que acho decorrer do atavismo caudilhesco, que os Panchos Villas da atualidade ainda não souberam superar, foi o que preponderou, disseminado a idéia de violência contra um “benfeitor da democracia”. Talvez, não fosse necessário. Mas, deixo aqui uma pergunta: que teria acontecido se ele tivesse tempo para articular uma “bolivariana” reação armada… Imaginem!  Honduras conflagrada numa guerra civil… que, agora, parece cada vez mais próxima.

Sem aviso, sem acerto, o Sr. Zelaya materializou-se, como disse um funcionário do Itamaraty, na embaixada do Brasil, em Tegucigalpa… Adentrou-a, sem nenhuma dificuldade, como esperado, com um séquito de seguidores… As imagens, insólitas, falam por si: deitado num sofá, pés calcados com botas de vaqueiro, sobre uma mesinha de canto e chapéu de caubói sobre a face, parecia roncar… Pelo chão, espalhados, outros dormiam… Num banheiro, nus, dois banhavam-se: um jogando água no outro… Depois, a recusa de dividir a comida com os funcionários brasileiros… Era a perfeita imagem de uma casa de fazenda invadida…

Não pediu asilo: preferiu, de alcatéia, o ambíguo status de abrigado, afinal não fora ali em busca de proteção. Com a ajuda da Venezuela, isto já foi declarado pelo seu próprio presidente, em operação clandestina, tornou ao território hondurenho, para resistir. Como não estava obrigado, pelo status de hóspede, a renunciar à atividade política, logo, tomando a Embaixada como escritório, se pôs a articular e a fazer proselitismo, abertamente. Não pedirá asilo, não deixará o território hondurenho, não aceitará outra alternativa, que não seja a de retornar à presidência da República, para terminar seu mandato.

Os “escrúpulos democráticos” deste Brasil soberbo não o permitem negociar com “governo golpista”: portanto não conferenciará com o Presidente Constitucional, Sr. Micheleti, em busca de uma solução diplomática. Exige, com arrogância imperialista, a recondução do presidente legalmente deposto ao poder: “o Zelaya é o presidente eleito democraticamente e tem o direito de terminar seu mandato”, sentenciou o Sr. Lula, como se fora o juiz da causa. Mutatis mutandis, de novo a aproximação: o Sr. Collor, aqui, também o foi e não teve preservado o mesmo direito, porque o Congresso Nacional, investido na função de Tribunal, como determina o nosso ordenamento jurídico, não obstante ele ter renunciado antes, o cassou (pouco importou a advertência de Josaphat Marinho, em contrário). Há, contudo, uma diferença: o nosso não intentou contra a ordem constitucional; não cometera o mesmo delito de traição da Pátria. Argüiram-no de utilização indevida de recursos sobrados da campanha eleitoral, de sonegação fiscal, de peculato, de corrupção passiva e de falsidade ideológica.  Processado, julgado, foi absolvido dessas imputações, pelo Supremo Tribunal Federal, mas teve que ficar, por oito anos, inelegível. Justiça se lhe faça: não utilizou o seu poder para obstaculizar as investigações e obedeceu a ordem judicial (do Congresso) pacificamente.

É isso aí, no sul como no centro desta infeliz banda da América: republicas nominais que nunca chegarão a ser Repúblicas… Tinham razão Pablo Rojas (Venezuela) e Bartolomeu Mitre, (Argentina): acabaram com a única república que havia na América Latina, disseram, em 1889, ao saberem do golpe que aqui implantou o atual regime.

Aí está o Brasil mergulhado nas profunduras de uma crise diplomática, só compara às honduras daquelas costas centrais… Oxalá consiga emergir honrado dela!

Fernando Guedes

25/9/2009

8 Comments

  • Prezado Fernando Guedes,
    apreciei o seu artigo que me levou à reflexão. Não vi e nem li na imprensa brasileira colocações de tal “profundura” até ler o que aqui está posto. Penso que as raízes desse fenômeno latino-americano estão estreitamente relacionadas à ética ou melhor à falta dela. Quando a conduta humana perante o ser e seus semelhantes exclui o respeito ao outro com sua inerente dignidade, desmorona “a base de toda construção ética, cujo campo é a prática, se baseia nesta pressuposição: a ética surge quando o outro emerge diante de nós.” (Leonardo Boff).
    Julizar Dantas

  • Acho que você analisou com imparcialidade a situação do Sr. Zelaya, pois foi buscar no ordenamento jurídico de Honduras, que é a sua Constituição. Rasgar a Carta Magna é coisa corriqueira das Republiquetas da America Latina. Fernando H. Cardoso, Hugo Chaves, Ivo Morales etc. fizeram. O que o Governo de Honduras teria que ter feito era prender o Sr. Zelaya, pois o mesmo foi julgado dentro das normas jurídicas do seu país. O Brasil se quer ser uma grande nação e ser respeita tem que agir como tal, não deveria ter permitido a entrada do Sr. Zelaya em nossa embaixada em Tegucigalpa. Pois o mesmo esta fazendo da nossa embaixada seu escritório político para convocar seus partidários para fazer manifestações a seu favor e contra o governo do Sr. Roberto Micheletti. Como o Brasil permanece com sua representação diplomática em Honduras, e se o Sr. Lula afirma que o governo de Sr. Micheletti é golpista. O Sr. Zelaya foi eleito democraticamente. Contudo, não respeitou a Constituição do seu País, querendo convocar e manipular uma consulta popular para modificá-la para uma possível reeleição. Na minha opinião merece estar preso.
    Camacan, 05/10/2009
    Abraços, Antonio Guedes

  • Really good work about this website was done. Keep trying more – thanks!

  • Recientemente me encontré con tu blog y he estado leyendo a lo largo. Yo pensaba que iba a dejar mi primer comentario. No sé qué decir, excepto que he disfrutado de la lectura. blog de Niza.

  • hola, Chicos, Es evidente que hay mucho que aprender acerca de esto. Creo que hizo algunas cosas buenas en características también. Sigue trabajando, gran trabajo!

  • Hola, Gente! Som un grup de voluntaris i la iniciativa de començar una nova marca a la comunitat. El seu weblog ens va proporcionar informació valuosa per a treballar. Vostè ha fet una feina meravellosa!

  • Olá a todos, eu realmente gosto do real internet site! Esta é certamente uma página fabuloso. Todos nós olhamos para a frente à leitura de informações muito mais interessante em que você vai passar a publicar no futuro. Eu aprendi um monte com isso. Obrigado pela sua compreensão.

  • http://www.fernandoguedes.blog.br é um dos blogs mais impressionantes que já vi. Muito obrigado por manter a Internet elegante para uma mudança. Youve tem estilo , classe bravata . Eu quero dizer isso. Por favor, mantenha-o , porque sem a internet está definitivamente falta de inteligência.

Got anything to say? Go ahead and leave a comment!


Deprecated: Directive 'track_errors' is deprecated in Unknown on line 0