ago 29, 2011 - Riacho de Santana    4 Comments

Elogio da Sericaia

Crentes, comei as coisas boas, que eu vos destinei, e agradecei ao vosso Deus, em vossas preces.

Alcorão

 

Foi nos conventos femininos que a elaboração doceira atingiu notoriedade, destinada a uma elite consumidora, habituada aos melhores paladares.

Alfredo Saramago, in Doçaria Conventual do Alentejo

 

 

Não pense besteira, porque é doce fino, merecedor de uma página literária… Como a não encontrei entre as dos nossos clássicos, tentarei preencher a lacuna com a precariedade da minha pena.

Família do Cel. Eujácio Castro

É nome feminino, sobre cuja etimologia os dicionaristas divergem. A fonte mais antiga que consultei, Diccionario Critico e Etymologico da Língua Portugueza, de Francisco Solano Constâncio, edição de 1858, diz que talvez venha do grego siraion, que significa vinho fervido com especiarias. O Caldas Aulete, edição de 1980, não opina sobre a origem da palavra, mas a edição eletrônica atual afirma ser proveniente do malaio serikaya, o que está em acordo com o Houaiss: do malaio srikáya, manjar composto de leite, ovos e açúcar, com datação de 1609. Admitamos, pela lógica, que esta seja correta, para resolver o problema da etimologia. Cuidemos agora da origem da receita…

É outro ponto controverso para os gastrônomos portugueses, porque uns afirmam ser indiana, ao passo que outros a reputam brasileira. Na Gastronomia e Vinhos do Alentejo, magistral obra coordenada pelo antropólogo eborense Alfredo Saramago, à página 242, lê-se esta afirmação: “A dúvida nunca mais se resolve. Uns dizem que a receita veio da Índia, outros que ela veio do Brasil. O que é certo é que desde os tempos da nossa Expansão que a sericaia ou sericá era executada, com todo o esmero, por dois conventos alentejanos que se arrogavam de direitos de importação da receita.” Os dois conventos são o das Chagas de Cristo, de Vila Viçosa e o de Santa Clara, de Elvas. Este o chamou, ao doce, Sericaia; aquele o batizou de Sericá. Sou mais pela origem brasileira, porque tenho, para isto, irretorquível razão, que adiante revelarei…

À Rua Portas de Santo Antão, 58, em Lisboa, está a Casa do Alentejo, nesta um bom restaurante oferece, entre as sobremesas regionais, Cericá com Ameixa de Elvas. Em Elvas serve-se a sericaia com suas famosas ameixas, as melhores de Portugal, que provem de ameixeiras “Rainha Cláudia”. Então há: Sericaia, Sericá e Cericá, em Portugal. No Brasil apenas Sericaia.

Compulsei Doçaria Conventual do Alentejo, outra obra maravilhosa de Alfredo Saramago, em busca das receitas alentejanas…

Num litro de leite, desfaça 250 gr. de farinha de trigo, uma pitada de sal e 12 gemas de ovos bem batidas. Ponha 500 gr. de açúcar em ponto de pasta e deite a mistura. Retire do lume, ponha num prato de estanho, golpeie levemente com uma faca, do centro para fora, e ponha no forno a tostar.” (Do livro de receitas do Convento das Chagas de Cristo)

“Bata 12 gemas com 500 gr. De açúcar e misture muito bem 200 gr. De farinha com um litro de leite. Misture tudo e ponha no lume. Assim que começar a tomar a consistência de um creme, retire do lume e deixe arrefecer. Bata as claras em castelo e misture com o creme. Ponha uma pitada de canela e o sumo de um limão.

Deite tudo num prato de estanho, às colheradas grandes, de uma forma desencontrada. Uma é posta no sentido do centro para as bordas e a outra é atravessada. Polvilha-se com canela em pó por cima e vai ao forno.” (Do livro de receitas do Convento de Santa Clara)

Como se pode deduzir, a farinha, em ambas as receitas, implicará uma consistência mais ou menos firme, permitido que o doce seja cortado em fatias, para ser servido à moda de Elvas, com ameixas em calda ou simplesmente só. Assim, sem ameixas, é como costumo comer a sericaia quando freqüento o Da Silva, no Rio de Janeiro. Estranha-me a ausência da canela na receita do Convento das Chagas de Cristo. Por quê? Não o sei! Talvez porque a canela evoca a mulher…

D. Mariquinha

Mas, há outra receita que considero a melhor de todas: A do caderno de Maria Magalhães Castro, Dona Mariquinha, esposa do Coronel Eujácio de Souza Castro. Esta receita foi passada para sua filha Matilde Magalhães Castro (Tia Tide), que a confiou à sua, Nilza Castro, portanto uma tradição familiar. Ei-la:

Ponha dois litros de leite para ferver com a canela em pau, até reduzir o volume a um litro e deixe esfriar. Acrescente-lhe dez gemas de ovos peneiradas, uma xícara de açúcar, uma colher das de café de sal e misture. Peneire a mistura numa panela de alumínio ou esmaltada, para torná-la mais fina e homogênea. Acrescente-lhe duas colheres das de sopa de manteiga e polvilhe com canela toda a superfície. Leve ao banho-maria por uma hora e meia, com um braseiro sobre a panela.

O resultado, acreditem, é o mais fino e saboroso creme que o gosto pode experimentar. Saboreado, com um cálice de Vinho do Porto, ultrapassa o limite do profano, para ser o “manjar dos Deuses”. Com esse manjar esses Castros, em Riacho de Santana, excederam-se na fidalguia de bem receber e agradar… Eu sempre fui distinguido com tal fidalguia e, para continuar a tradição, incentivei Hilca a aprender, com Nilza, o preparo da sericaia.

A razão da minha convicção sobre a nacionalidade da receita está em Bugrinha, romance regional, de Lençóis, o coração diamantino da Bahia, quando o autor a menciona em interessante passo. Dona Ermelinda, mãe de várias moças, dialogando com o senhor Matos Contreiras, que lhe oferecera um livro de receitas de doces, diz:

Olhe, precisa ir lá em casa provar uma especialidade minha… um doce da terra… uma “sericaia”…

D. Ermelinda, diziam, prendia os futuros genros com a sericaia… Provou, casou. Se não quer, não coma da sericaia de D. Ermelinda.

Outra personagem, Pereira Miranda, que conhecia a astúcia de D. Ermelinda e a fama casamenteira de sua iguaria, advertiu Matos Contreiras:

– Se comer da “sericaia”, é tiro e queda…

Isto é, casamento certo!

Que quis dizer o mestre da poligrafia brasileira, conhecedor profundo da cultura portuguesa, pela voz de sua personagem, com as expressões: especialidade minha e um doce da terra? D. Ermelinda, baiana, de Lençóis, estaria corroborando a origem brasileira da receita? Estou convencido disto, e de mais: receita baiana! Como a de D. Mariquinha, em que a farinha não entra, para não corromper a delicadeza do creme, creme capaz de arranjar até casamento…

Matilde Castro

Os “doces” baianos descendem dos portugueses, porque é honra a boa tradição, havendo o elemento autóctone, que, graças a Deus, não é somenos (Afrânio Peixoto). Não sei se convencerei os gastrônomos portugueses de que a dúvida está resolvida: É brasileira, da Bahia, a sericaia, um desses elementos autóctones da nossa doçaria conventual ou patriarcal, que, entretanto, não diminui a Elvas e Vila Viçosa o mérito da propagação da iguaria.

 

Fernando Guedes

29/8/2011

 

4 Comments

  • Fernando Guedes,

    O meu conhecer da longínqua Riacho de Santana, apesar de vizinho pela minha origem natural, se limita à algumas passagens e nunca pela presença em suas ruas e praça centrais. A minha expressa e prometida visita à sua querida Riacho, se torna mais desejada agora, que acaba de ser apresentada para o mundo com o berço dos Manjares dos Deuses por um de seus Fidalgos, da gema dos Castros e filhos ilustres.

    Até breve,

    Edvar Fagundes

  • Parabéns, Fernando. Texto precioso, como a iguaria.
    Compartilhar com você do almoço no Da Silva será ainda mais reconfortante. Será que Câmara Cascudo não fez alguma menção a este quitute?
    Grande abraço,

    Maurício Elias

  • Não me causou surpresa que no seu afã de mais se ilustrar fizesse pesquisa sobre culinária e até importasse livro a respeito.
    Justifica-se também tal dedicação pois é resultado de um hedonismo muito grato às nossas papilas gustativas.
    Todas estas motivações me levam a sonhar com um dia em que terei a ventura de satisfazer até meu superego, brindando-me com este manjar, feito à sua batuta, atendendo à uma receita, não a da propalada Alentejo, mas a do coração diamantino da Bahia.

    O meu pâncreas que se vire
    …este prazer não me tire.
    Eu não vou fugir da raia
    ao provar tal sericaia.
    José Magnavita.

  • Prezado Fernando Guedes
    A distância que me separa da sua Riacho de Santana não será motivo para não conhecer tamanha iguaria.
    Avise-me quanto estiver lá, em férias, que lhe farei uma visita.
    Abç,
    Mosca

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