jul 16, 2012 - Poligrafia    6 Comments

Cinco, dezenove, cinquenta e seis…

 
Política: é a arte de tomar, manter e utilizar o poder.
André Comte-Sponville

 

Oitenta! Não é, simplesmente, o resultado da votação que cassou o mandato de Demóstenes Torres, no Senado Federal… Não, não é somente isto! Há mais: é o retrato do Brasil político… Quer conhecer o Brasil político? Ei-lo: Cinco, dezenove, cinquenta e seis!

Estranho? Pode ser… Fácil, contudo, de ser explicado. Começo pelo meio. Os dezenove que votaram contra a cassação do mandato de Demóstenes Torres são, nesse estranho teorema estatístico-político-moral, os éticos. Penso, de boa fé, que os dezenove votaram orientados pelo o ensinamento evangélico: Antes de apontar o argueiro no olho de teu irmão, retira, primeiro, a trave que tens nos próprio olho… Por que cassariam o mandato de Demóstenes, se os pecados arguidos eles cometem igualmente? Foram rigorosamente éticos!

Irreverente, franco, tanto que chegava parecer deseducado, o sábio J. J. Calmon de Passos ensinava: Ladrão que rouba e declara o roubo age com ética, porque a ética é o discurso veraz. Se essa ética existe, é porque há uma moral que a justifica. Conviver ou não conviver bem com ela (a sociedade) é outra história.

Os cinco são, a meu juízo, o grande problema em qualquer sociedade… Entre cassar ou não cassar o mandato de Demóstenes esse grupo preferiu não decidir, não mostrar sua convicção. São assim: têm a cara repulsiva da abstenção. Ignoram, de propósito, o mérito das coisas; lavam as mãos em face das aflições humanas; abstêm-se quando seu interesse periclita. Assim os covardes, os pusilânimes, os juízes políticos e comodistas. São, em face das opressões, surdos e cegos. São a parcialidade da imparcialidade, por isto mais perigosos, porque agem à sorrelfa, esquivando-se sempre. Não se comprometem; nunca se mostram de frente, sempre se apresentam em enganador perfil. São, para mim, medíocres hipertrofiados, que, em todos os tempos, nunca foram maioria na humanidade; não o são no Senado… Fazem, contudo, grande mal!

Os cinquenta e seis são os hipócritas! O indivíduo-tipo desse grupo cabe, como a luva em mão certa, no perfil que Igenieros descreveu nO Homem Medíocre. Inclinados menos ao ódio que à hipocrisia, formam uma grei cujo elo de união é a falsidade. Simuladores, julgam sentados no próprio portfólio dos pecados que condenam. Apontam cisco no olho de outros, sem tirarem o argueiro do próprio. Sabidos, agem com meticulosa intenção de confundir. Quem assistiu a Demóstenes acusar Renan, em processo semelhante de cassação de mandato, idealizou Cícero invectivando contra Catilina… Demóstenes será sempre um simulador, e simulou tanto que terminou enredado na própria simulação.  A simulação é assunto para uma tese; em política, para várias…

Entre eles há interesse e não amizade, por isto, como doutrinou Igenieros, a política pode criar cúmplices, mas nunca amigos. Como nos hipócritas as cumplicidades se extinguem com o interesse que as estabelece, sacrificaram o mandato de Demóstenes, para salvarem sua precária imagem de moralidade. Tudo mentira… Tudo falsidade…

Quem pensa que na sociedade é diferente, engana-se. Esse ufanismo doentio que nos faz donos do Cruzeiro do Sul, que nos insufla grandeza tão ridícula: nosso céu tem mais estrelas, nossos bosques têm mais flores, nossas vidas mais amores etc. é sinal patognomônico de uma moral precária, essa mesma que leva o vulgo à conclusão que o deslize moral de Demóstenes é diverso de avançar um sinal de transito vermelho; de consumir produtos piratas; de sonegar imposto de renda, com recibos falsos; de utilizar carteira de estudante, não o sendo, para pagar meia-entrada; de utilizar atestado médico, estando sadio, para se esquivar de uma responsabilidade; de burlar planos de saúde, fazendo uma pessoa passar por outras nas emergências, de receber ou oferecer caramelos como moeda de troco, de simular doença para obter vantagem etc. etc. etc. Há poucos dias eu me encontrava na fila do caixa de um supermercado… À minha frente, com um carro de compras, três senhoras: uma idosa a quem as duas outras chamavam de mãe. Uma dessas adiantou-se, sacou da carteira seu cartão de sócia e o apresentou à funcionária. A irmã mostrou-se interessada em possuir o cartão de sócia. A outra, esbanjando esperteza, aconselhou: não é necessário. Para que pagar mensalidade sem necessidade? Vou lhe passar o meu CPF e uma cópia do meu RG. Quando quiser comprar diga, no balcão de atendimento, que esqueceu o cartão em casa e solicita um provisório.  Simples, não é? Pois bem, que diferença moral tem esse ato do que a Demóstenes custou o mandato de senador? Nenhuma! A diferença está apenas na hipocrisia com que os moralistas da sociedade reclamam a retidão moral dos políticos. Esquecem, entretanto, que os políticos, todos eles, são recrutados nessa mesma sociedade que tolera essas imoralidades.

Não nego que na sociedade há quem devolve dinheiro achado na rua à polícia; dólares encontrados em sanitário de aeroporto ao dono; esferográfica Bic, pelo SEDEX, ao proprietário, de outra cidade.  Seu Chico, Rejaniel e Ioiô são uma minoria de Quixotes, que resistem contra os moinhos da imoralidade, mas esse conjunto, à esquerda dos cinco, não conta. Quando o fato de sua honestidade é divulgado na mídia, ocorre, na sociedade, o abalo do espanto. Ninguém jamais deu atenção ao incógnito maranhense que vive na rua, até ser protagonista de fato inusitado: devolver o que lhe não pertence à polícia! Coisa rara, portanto incomum, portanto manchete de telejornais por semanas… Eu tive a infelicidade de esquecer, no data center de um hotel 5 estrelas, no Rio, meu pen drive, e até agora não mo devolveram… São esses, que não devolvem o bem alheio, que mais clamam pela cassação de políticos desonestos!

A ética tradicional sempre distinguiu os deveres para com os demais dos deveres para consigo próprio. No debate sobre o problema da moral em política, vêm à tona exclusivamente os deveres para com os outros (Norberto Bobio, in Ética e Política). Pois bem, é o notável milanês quem cita Benedetto Croce, num remate esclarecedor: “Outra manifestação da vulgar inteligência acerca das coisas da política é a petulante exigência que se faz de honestidade na vida política”. Não se pode exigir honestidade do político, se a não exigiu, antes, do cidadão que a própria sociedade fez político. Afinal, seguindo o passo de Croce, “a honestidade política nada mais é que a capacidade política”…

Este texto, que é uma opinião, pode despertar concordância ou discordância, não importa… O que não deve, espera o autor, é suscitar dúvida. Por isto insisto com Bobio. “A ética política se torna assim a ética do político e, como ética do político, e, portanto, ética especial, pode ter seus justificados motivos para aprovar uma conduta que o vulgo poderia ver como imoral, mas que o filósofo vê simplesmente como o necessário conformar-se do indivíduo-membro à ética do grupo”. O pecado mortal de Demóstenes não foi a quebra do decoro parlamentar, ao mentir na tribuna do Senado, como o acusaram. Seu grande erro foi sua excessiva arrogância, que o incompatibilizou com os de sua grei, tornando-se inconveniente ao convívio parlamentar. Demóstenes era uma raposa imprudente arvorando-se em rei dos bichos. Suas catilinárias parlamentares, divulgadas pela TV Senado, nada expressavam de Maquiavel ou Orwell, eram apenas a destilaria do seu jacobinismo extemporâneo, razão da sua desgraça política…

Como sei que a habilidade em diagnosticar e a competência em tratar determinam o sucesso da cura, ofereço ao prezado leitor, para reflexão, este lugar de Croce, colhido na citação de Bobio: “Ao passo que, quando se trata de encontrar uma forma de cura ou submeter-se a uma operação cirúrgica, ninguém pede a presença de um homem honesto… mas todos pedem, procuram, desejam médicos e cirurgiões, que sejam honestos ou desonestos, mas tenham habilidade comprovada em medicina ou em cirurgia… nas coisas políticas todos pedem, em vez disso, não homens políticos, mas homens honestos, fornidos ao máximo de atitudes de outra natureza”.

Dizem que a cassação de Demóstenes, com cuja pele nada me importo, atendeu ao clamor da sociedade. É sempre assim… Cassa-o! Cassa-o! Se, com essa cassação, o Senado conseguisse converter os 56 ao credo ético dos 19, a consciência política, quando não tivesse logrado moralidade diversa, ao menos teria a compensação de livrar-se da hipocrisia. Foi-se Demóstenes, vem o suplente, para o Brasil político continuar rigorosamente o mesmo: Cinco, dezenove, cinquenta e seis…

Fernando Guedes
Salvador, 13/7/2012

6 Comments

  • Fernando, a história acontece uma só vez ou será uma interminável repetição? O eterno retorno faz com que versões diferentes do mesmo fato se repitam sucessivamente. Vimos e veremos inúmeras situações semelhantes na política e na sociedade… infelizmente é um aspecto da insanidade humana… mudam apenas os fatos, os personagens e a localização temporal (passado, presente e futuro)…
    “De tudo ficaram três coisas…
    A certeza de que estamos começando…
    A certeza de que é preciso continuar…
    A certeza de que podemos ser interrompidos
    antes de terminar… (Fernando Sabino)”
    … enquanto Você não for interrompido… é preciso continuar!
    Obrigado pela sua amizade e por nos levar à reflexão!

    Um abraço,
    Julizar Dantas

  • Como sempre, vc sintetizou no seu brilhante artigo, o pensamento dos honestos, que ainda há no país (por incrível que pareça!): como ladrões, bandidos, corruptos, podem julgar seu par em gênero, número e grau, sacando-o da sua cadeira de senador, quando o que fazia era simplesmente política???Parabéns, Fernando, por mais esta pérola de inteligência, consciência, e sim, de muita honestidade.
    Grande abraço.

  • Prezado amigo Fernando Guedes – Sem maiors comentário sobre o artigo. Traduzes de forma brilhante, o pensamento do bons.
    O episódio lembrou-me o mais brilhante dos sermõs de Pe. Antônio Vieira – “O Bom Ladrão” que transcrevo um pequeno trecho para sintetizar o seu pensamento (que também é o meu).
    Navegava Alexandre em uma poderosa armada pelo Mar Eritreu a conquistar a Índia, e como fosse trazido à sua presença um pirata que por ali andava roubando os pescadores, repreendeu-o muito Alexandre de andar em tão mau ofício; porém, ele, que não era medroso nem lerdo, respondeu assim.
    — Basta, senhor, que eu, porque roubo em uma barca, sou ladrão, e vós, porque roubais em uma armada, sois imperador? — Assim é. O roubar pouco é culpa, o roubar muito é grandeza; o roubar com pouco poder faz os piratas, o roubar com muito, os Alexandres. Mas Sêneca, que sabia bem distinguir as qualidades e interpretar as significações, a uns e outros definiu com o mesmo nome:
    Eodem loco pone latronem et piratam, quo regem animum latronis et piratae habentem. Se o Rei de Macedônia, ou qualquer outro, fizer o que faz o ladrão e o pirata, o ladrão, o pirata e o rei, todos têm o mesmo lugar, e merecem o mesmo nome.
    Grnde abraço,
    Carlos Mosca

  • Fernando,
    muito obrigado!

  • A polêmica aberta sempre abre caminhos, a democracia exige opiniões claras, com consciência de cidadania e de combate às trevas e ao obscurantismo. E uma decisão de nunca desistir e perseverar na luta por um mundo diferente.
    Não deixo de acreditar e lutar pela realização da utopia , aproximando-a, com o passar dos anos e maior experiência , da realidade.
    vou circular o texto
    valadares

  • Caro Fernando como vai?
    Estava em Senhor do Bonfim e retornei na 2ª feira, meu amigo você com sempre sintetizou muito bem no seu artigo esta situação que não é a primeira e não sera a ultima. So vejo uma maneira de se mudar esta situação, é saber votar, e isto sóm depende de nós.
    Abraços, Camilo.

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